(Esta postagem é dedicada ao meu grande amigo e longevo defensor dos direitos humanos Leonardo Castilho, que me cobrou uma posição sobre o assunto. Então, vamos lá.)
Normalmente, advogados criminalistas tendemos a nos posicionar a favor da defesa, quer dizer, a favor dos acusados. Chamem a isso cacoete profissional ou qualquer outro nome, fato é que, a princípio, a maioria dos advogados, acostumados a trabalhar pelo acusado, procuramos apontar falhas na acusação, ou a necessidade de relativizar alguns desejos sócio-culturais vingativos e maniqueístas, normalmente fomentados por uma cultura da luta entre "bandidos" e "mocinhos", em que todos nós, ocidentais, acabamos, normalmente por bons motivos - afinal, temos de aspirar a ser "mocinhos", para a boa ordem social - , socializados. A crença no absoluto deste binômio, no entanto, costuma trazer grandes decepções e grandes hipocrisias.
De todo modo, quando nós, advogados criminalistas, começamos a fazer um discurso semelhante ao que ensaiei acima, logo vem, da maioria do nosso meio de "cidadãos-de-bem", uma dura crítica, quando não uma irada saraivada de insultos, que vão desde "defensor de bandidos" ou "adepto de fascínoras" - como diria o folclórico ex-deputado, não tão saudoso, Amaral Netto -, até o tradicional argumento retórico, "e se fosse a sua(eu) filha(o)?".
Quando confrontados com uma situação como estas, em debates formais ou rodas de bar, nós, advogados criminalistas, constrangidos, constumamos argumentar que, em primeiro lugar, este tipo de indignação, fruto de uma mescla de desejos incoscientes, afetos e sentimentos mais ou menos conscientes, casa bem com o sujeito vítima de crime, ou com seus próximos, mas não pode ser critério de gestão política em segurança pública, muito menos critério para princípios que norteiem a legislação penal. Políticas públicas e legislação têm de ser fruto do debate mais consciente - e, logo, racional - possível, aberto aos plurais pontos-de-vista sociais, inclusive as histórias pessoais de vitimização, mas nunca feitos com base somente nestas últimas, aos moldes do improviso, de fragmentaridade, e do imediatismo que Luiz Eduardo Soares tanto e tão bem criticou nas políticas de segurança pública brasileiras.
Também procuramos argumentar, no plano mais jurídico, que um
estado de direito, ou seja, um estado que funciona sob regras jurídicas democrática e previamente concebidas para a delimitação da atuação do poder coercitivo (legítimo, pois) do estado; o estado de direito necessita de algumas garantias formais contra o abuso, possível e historicamente constante, do poder de punir que este mesmo estado detém em face de quem tenha cometido um crime. Nesta linha de garantias, incluem-se a vedação à punição anterior ao fim de um processo penal, a igualdade de armas no processo entre acusação e defesa, a ampla liberdade probatória, a imparcialidade do julgador e, para o que mais no interessa - já veremos por quê -, a vedação à consideração da culpa de alguém, antes que um processo penal democrático tenha transcorrido até o final (normalmente referida como
presunção de inocência). Afirmamos, além disso, que estas garantias não foram feitas "para proteger (direitos humanos de) bandidos e fascínoras", mas, ao contrário, para garantir a maior taxa possível de legitimidade das condenações penais, obtida esta legitimidade ao custo de que se evite ao máximo que alguém seja processado e condenado à prisão por um crime que não cometeu.
Como, finalmente, a esta altura, não conseguimos convencer mais do que uma meia dúzia de interlocutores, já que temos uma concorrência quase-desleal com os verdadeiros romances exibidos pela grande mídia, tendentes a fazer qualquer pessoa se ver na qualidade de vítima de crimes bárbaros, mesmo que more no Leblon e nunca tenha sido sequer furtada na vida; a esta altura, nós, advogados criminalistas, lançamos mão de dois outros argumentos sentimentais de contra-retórica: o primeiro, o de que os tais "mocinho" ou "cidadão-de-bem", embora ficções necessárias para a socialização de bons cidadãos, cumpridores da lei, não passam disto: ficções. Não existe o "cidadão-de-bem" e a mera referência ou auto-referência nestes termos somente mostra o quão seletiva é a criminalização das pessoas. Um série de condutas bastantes corriqueiras e mesmo toleradas socialmente - algumas graves, algumas nem tanto - é
crime segundo a lei brasileira, do gesto obsceno aos crimes tributários, passando por crimes contra a honra, câmbio ilegal e corrupção, e a maioria, senão a totalidade dos auto-proclamados "cidadãos-de-bem" já praticou alguma delas. O único motivo pelo qual não foram presos ou processados é que eles não são a "clientela" do sistema penal, não são normalmente etiquetados como "criminosos" e não têm os holofotes das autoridades penais voltadas para si. Neste sentido, crime comete
o outro: o que
nós fazemos é "sobreviver" neste "estado desorganizado e voraz", e perante esta "sociedade caótica", em que "ninguém respeita mais ninguém"...
Como este argumento é meio bombástico e razoavelmente mal-recebido, o nosso segundo argumento contra-retórico é perguntar, na linha dos nossos críticos, "e se o seu(ua) filho(a) ou parente próximo ou amigo próximo fosse acusado de crime?" Certamente, todos os nossos interlocutores respondem que quereriam um processo justo, com garantias e igualdade, especialmente contra prisões arbitrárias e desnecessárias, bem como contra invasões excessivas ou indevidas sobre a privacidade ou os bens do acusado.
E eu falei tudo isso, Leo e todos os meus leitores, porque vou, agora, e rapidamente, defender o Álvaro Lins - processualmente, haja vista que não conheço o teor das investigações. Não sem antes tripudiar um pouquinho é verdade. Afinal, ele não está me pagando para defendê-lo. Pois é, quem lembra do Álvaro Lins como chefe de Polícia Civil, lembra da sua gana de vociferar contra os "bandidos", contra "os marginais", que deveriam ser impiedosamente perseguidos e punidos. Em mais de uma manifestação oral ou escrita ele defendeu a "tolerância zero" para a "bandidagem" e bradou a favor de punições mais severas. Mas eis que o mundo dá voltas e quem foi o criminoso da vez? Álvaro Lins. Acusado de uma série de crimes, que incluem corrupção passiva, lavagem de dinheiro e quadrilha, o ex-chefe de Polícia Civil do nosso estado acabou preso em flagrante, pela Polícia Federal, no apartamento onde mora, durante o cumprimento de mandado de busca-e-apreensão.
Mas eis que, de novo, quis o irônico destino que Álvaro Lins fosse vítima de uma prisão em flagrante totalmente, completamente, indubitavelmente,
arbitrária e
ilegal. Ora, pelo que vimos nos jornais - o.k., sei que sempre plantei a dúvida sobre estas notícias, mas não temos nenhuma outra fonte a que recorrer, no momento -, o flagrante se constituiu, na leitura lamentável da autoridade policial federal que presidia o ato, pela descoberta de documentos que indicavam ser o apartamento onde se encontrava o nosso personagem objeto de lavagem de dinheiro. O detalhe óbvio é que a lavagem de dinheiro, se de fato ocorrida, ter-se-ia dado algum tempo antes. Ora, de novo, como diria o Conselheiro Acácio - que, certamente, ao contrário de alguns membros da Polícia Federal, leu o Código de Processo Penal brasileiro (CPP) -, requisito básico do flagrante é a
flagrância; isto é: a ocorrência do crime
quase que imediatamente anterior à, ou no momento da, declaração da prisão. Não é flagrante a descoberta de indícios da ocorrência de um crime dias, semanas ou meses antes, não importa o quão fortes sejam ditos indícios. Verdade, o CPP até prevê uma hipótese de flagrante presumido (art. 302, IV), mas, também aqui, é preciso que a prisão seja, como diz o código, "logo depois" de ter cometido o crime, e que o preso esteja portando coisas que façam presumir ser ele o autor do crime, cometido
logo antes. E isso não tem nada que ver, ao contrário do que pensaram os nossos zelosos deputados estaduais, com o fato do crime ser ou não "inafiançável" - até porque não são só inafiançáveis os crimes assim declarados pela constituição, mas também os assim enquadráveis nos critérios do art. 323 e 324 do CPP.
A prisão do - e o processo penal contra - nosso combativo ex-chefe de Polícia Civil, então autoridade máxima encarregada de investigar ilícitos penais, é, felizmente, uma grande morte simbólica ao "cidadão-de-bem". O fato de que ele tenha sido preso ilegalmente é, infelizmente, uma grande morte simbólica do estado de direito.
João Pedro C. V. Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)