terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Mensagem de Fim-de-Ano e Novo Artigo no Site

Prezados amigos:

Passou-se muito tempo sem que pudéssemos escrever neste espaço. É uma pena, porque é um espaço interessantíssimo e que nos custou muito tempo para construir. O acúmulo de tarefas e obrigações, uma realidade para todos nós, nos impede, às vezes de atualizar este espaço como queríamos. E olha que neste meio tempo, muita coisa comentável aconteceu: absolvição dos policiais acusados de homicídio do garoto João Roberto, ocupação policial-militar da comunidade Santa Marta e da comunidade Cidade de Deus, e, mais recentemente, morte de dois seqüestrados junto de três seqüestradores em perseguição policial.

Mesmo com tudo isso tendo passado em branco neste espaço, nunca é tarde para voltar. E nada melhor do que voltar para desejar boas entradas para todos neste 2009 que vem chegando. O ano de 2008 foi muito importante para o Brasil e para o mundo. De resto, cada ano é único, e, por isso, reserva novidades boas e ruins para cada um de nós e para todos nós, como um povo e uma sociedade (nacional, regional, internacional, mundial).

Um EXCELENTE ANO NOVO são os nossos votos para todos os nossos amigos, clientes e colegas.

E aproveitem para, neste fim/início de ano, checar o novo artigo que está no site, intitulado, no site, "Crítica à Judicialização da Política" (clique aqui).

Um grande abraço,

João Pedro Pádua e Breno Melaragno Costa

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

João Pedro Pádua participará de seminário sobre o caso Eloá

O advogado João Pedro Pádua, sócio de Melaragno Costa e Pádua Advogados Associados e colaborador deste blog participará de uma mesa de debates sobre o caso Eloá. João Pedro Pádua falará nesta mesa, que contará também com um procurador de justiça do Minsitério Público do Estado do Rio de Janeiro, um delgado da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro e uma psicóloga. O evento será realizado na próxima quarta-feira, dia 12 de novembro, às 19h, no campus de Copacabana da Universidade Estácio de Sá, situado na Rua Raul Pompéia entre as ruas Sá Ferreira e Souza Lima. A entrada é franca.

sábado, 27 de setembro de 2008

A lei seca e a secura do debate

Fiquei muito tempo sem escrever. O tempo é curto, os assuntos são muitos e acho que só vale a pena escrever um post se ele for servir para informar os leitores e fomentar debate entre eles. Do contrário, o blog não passa realmente de um diário eletrônico e público, coisa muito pouco afeita a um blog que se liga a um escritório de advocacia.

Falando nisso, muitas vezes, já que sou criminalista, me perguntam sobre a tal lei seca e sobre a minha opinião acerca dela. Já dei a minha opinião muitas vezes, informalmente, em particular, mas nunca a tinha exposto em público. Anteontem, aqui de Buenos Aires, onde estou no momento, recebi um incentivo para organizar esta minha opinião e publicá-la, ainda que com a informalidade que pede um blog.

Em primiero lugar, a tal "lei seca" é a Lei n.º 11.705 de 19.07.2008, que altera a Lei n.º 9.503 de 23.09.1997 (Código de Trânsito Brasileiro). Seu primeiro objetivo, expresso no seu art. 1º, é "estabelecer alcoolemia 0 (zero) e impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do álcool [...]." (grifo nosso: quer dizer, já havia penalidades, só que eram menos severas). Ainda assim, autoridades da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e do Ministério da Saúde, presentes a um congresso em São Paulo, ao qual estive presente, em agosto, repeliram este apelido popular que a mencionada lei recebeu (lei "seca"). Argumentaram, com alguma razão, que esta lei não proibiu o consumo do álcool - o que seria um absurdo, já que só se proíbe o consumo de drogas mais pesadas, tais como a maconha e a folha de coca -, mas que somente restringiram o consumo desta substância psicoativa no que se relaciona à direção de veículos automotores.

Mas, verdade seja dita, nunca achei que eles tivessem toda a razão. Em primiero lugar, se realmente ninguém está proibido de beber, estão todos proibidos de beber qualquer quantidade de álcool se forem dirigir, qualquer que seja a pessoa, qualquer que seja o local, qualquer que seja a distância. Isto, dado o caráter social das bebidas alcóolicas - exceto para os alcóolatras - é uma proibição e tanto. Poucas pessoas, em relação aos usuários recreativos e esporádicos - mesmo entre algunas habituais -, poucas pessoas, dizia, bebem bebidas alcóolicas sozinhas. E quando o fazem, fazem-no em casa, de maneira que dificilmente terão de dirigir depois. Embora não tenha visto nenhum estudo neste sentido, creio ser uma observação etnológica informal válida e todos poderão concordar com isso - novamente, ressalva feita aos aditos em álcool, que, naturalmente, também não responderiam a qualquer lei repressiva, porquanto têm compulsão (física) a consumir a substância.

O que nos leva à segunda observação. Quando ouvi as autoridades de saúde mental mencionadas acima, todas muito entusiasmadas com a lei (seca) em questão, não pude deixar de me perguntar se a propositura da alcoolemia zero para motoristas tinha algum fundamento racional ou se era, mais uma vez, atitude política meramente voluntarista e moralizante. Por isso, ainda em São Paulo, em agosto, mandei, na qualidade de cidadão comum, um e-mail para o Ministério da Saúde, perguntando se havia estudo(s) no(s) qual(is) se basearam os técnicos que cunharam proposta tão radical quanto restringir a zero a quantidade de álcool possível para o motorista. Sem que eu me possa dizer surpreso, até hoje não recebi resposta.

O que eu recebi, anteontem, foi, inesperadamente, um informativo da Câmara dos Deputados que dava conta da propositura de um projeto de lei, de n.º 3715/08, do deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS), que visava, justamente, no momento em que a sociedade se teria "convencido" do acerto da lei seca, (quase) reverter o que tinha sido feito, em termos legislativos. O projeto de lei pretende voltar o limite de alcoolemia para caracterizar infração de trânsito a 0,6 g/L (grama por litro) de sangue - como era antes da lei seca -, além de limitar a apreensão do veículo e da carteira de habilitação para concentrações acima de 1,2 g/L. Por fim o projeto limita a caracterização do crime de direção sob efeito de álcool a concentrações a partir de 1,6 g/L.

Na justificativa do mencionado projeto, embora seja razoavelmente confusa e utilize, sem citar, partes de um blog - referenciado adiante -, ainda assim, se apresenta, agora sim, um estudo epidemiológico sobre o efeito do álcool em acidentes de trânsito, o capiteneado pela dra. Vânia Leyton (USP) (clique aqui), e uma experiência internacional, a da França, relatada por um post no blog do ativista Luis Favre (clique aqui). No estudo da dra. Leyton, baseada em análise toxicológica de mais de 2000 mortos em acidentes automobilísticos no ano de 1999 na cidade de São Paulo, o que se descobriu, além da correlação positiva entre acidentes de trânsito fatais e alcoolemia positiva (da ordem de 50% - ainda que se compute nestes números a alcoolemia positiva em vítimas de atropelamento), o que se descobriu, dizia, era que a média de alcoolemia em tais vítimas, mesmo entre as mulheres, que têm médias menores, superava o 1 g/L (e variava de 0,2 g/L a até mais de 5g/L!). Se se contar só a alcoolemia acima de 0,6 g/L (o que hoje se considera crime - e de perigo abstrato), mais de 96% das vítimas fatais tinham esta concentração, o que, somado ao fato de que ao menos 50% do total de vítimas não tinha alcoolemia positiva, e ao fato de que se contavam também vítimas de atropelamentos - as quais, evidentemente, não dirigiam veículo -, tudo isso torna os quase 4% restantes praticamente insignificantes do ponto de vista estatístico.

Pois bem, não fosse isso suficiente, na postagem do blog mencionado, deu-se notícia de que a França, que tem correlação semelhante entre abuso de álcool e acidentes fatais de trânsito, teve oportunidade de discutir a acoolemia zero, diante de tais números, mas não a aceitou. E sabe qual o argumento que uma das principais ativistas anti-álcool no trânsito francesas, Chantal Perrichon, usou para justificar a sua concordância com o rechaço desta medida?
"Na nossa associação não queremos que a lei seja alterada para a tolerância zero, porque pensamos que isso seria penalizar o conjunto da população em relação àqueles que realmente são uma ameaça para os demais. Segundo as estatísticas, 80% dos acidentes mortais são provocados por condutores com um teor alcoólico superior a 1,2 g/l no sangue. Essas pessoas são as mais perigosas. Não vejo por que deveríamos, num primeiro momento, penalizar o conjunto da população, enquanto que não é o álcool ingerido de forma ocasional ou excepcional a maior ameaça"
Que tal? Muito racional e coerente, não? Então por que não tivemos uma discussão deste tipo no Brasil - ou, ao menos, por que ela não envolveu a população como um todo? Por que a medida da tolerância zero - como tantas outras "tolerâncias zero" - para o álcool no trânsito alcançou tão grande unanimidade? Por que se aceitaram as notícias de que em um mês tal lei seca já teria feito efeito, quando é óbvio que uma correlação estatística deste tipo só pode ser feita em períodos de tempo muito maiores, a fim de excluir todas as outras possíveis explicações para a variação da taxa? Por que um argumento óbvio como o do deputado Pompeo de Mattos, que antes já havia sido pensado mais proximamente pelo meu amigo Rodrigo Moreira - de que essa diminuição dos acidentes, se pudesse ser logo correlacionada à edição da lei seca, seria, em verdade, efeito da maior e mais ostensiva fiscalização do alcoolismo no trânsito, conduta que sempre fora punida pelo Código de Trânsito Brasileiro - por que um argumento como este nunca fez voz na sociedade e nos meios de comunicação? Por que, por fim, se vende sempre esta idéia de que quem é contra este radicalismo sem apoio em estudos e debates que o racionalizem é "defensor de que as pessoas dirijam bêbadas por aí", quando, na verdade, do que se trata é de manejar refletidamente os riscos numa sociedade de riscos - e seus reflexos na liberdade (sempre arriscada) dos sujeitos de direitos?

É disto, na verdade, que se trata. Hoje, alguns meses depois da entrada em vigor da "salvadora lei seca", como sempre no Brasil, já arrefeceu a fiscalização, e não sabemos o que ocorreu com os números tão impressionantes que se produziram na diminuição de acidentes automobilísticos. Uma última pergunta, então: vamos sempre ver nossa liberdade tolhida pela próxima medida populista de "salvação" do povo pelo estado?

* * *
Em tempo: para os penalistas, uma reflexão adicional: lembram-se que recente teoria do direito penal reinterpreta a edição de crimes de perigo abstrato - que antecipam a punição para antes do resultado danoso, ou mesmo do real perigo de sua ocorrência - como uma forma de neutralizar o "inimigo da sociedade"? Uma dica: o autor desta teoria começa com "G" e termina com Jakobs...

João Pedro Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

A ferradura e as garantias processuais

Em uma das mais interessante cenas do filme "O que é isso, companhaneiro" (1987), de Bruno Barreto, adaptado do romance homônimo de Fernando Gabeira, um ator coadjuvante, que faz o papel de amigo do personagem do Fernando, após criticado por ser muito apático e não se engajar na luta armada contra a ditadura, responde algo como: "vocês e a ditadura são como as duas pontas de uma ferradura: parecem muito distantes, mas na verdade estão muito próximos". O que, naturalmente, o nosso personagem queria dizer ao do Fernando é que de nada adiantava lutar contra a ditadura usando os métodos da própria ditadura, ou seja: seqüestro, tortura, terrorismo, coerção; violência, em geral, enfim.

Pois bem, no mundo jurídico - jurídico-penal, especialmente - é muito comum uma dualidade entre os assim-chamados "garantistas" (às vezes também chamados "liberais" ou "minimalistas") e os assim-chamados "punitivistas" (embora este nome seja menos estabelecido e mais intercambiável com "duros", "maximalistas", "sancionatórios" e outros mais ou menos completos sinônimos). A idéia é a seguinte: os "garantistas" - cujo nome deriva de uma obra clássica de filosofia penal, tão citada quanto pouco lida, chamada "Direito e Razão" e escrita pelo ex-juiz italiano Luigi Ferrajoli - os "garantistas" acreditariam que o direito penal teria de ser mínimo, ou seja, aplicar-se a pouquíssimos casos, somente onde o seu amargo remédio, a pena de prisão, fosse estritamente necessário em relação à violação das situações de normalidade social consideradas mais vitais pela ordem jurídica - os chamados bens jurídicos (ou jurídico-penais).

Os "punitivistas", por sua vez, parecem concordar com o direito penal seja um direito amargo, mas toleram uma maior expansão de sua aplicação. E fazem isso, em virtude de acreditarem que várias condutas violam os tais bens jurídicos fundamentais da sociedade, e que, por isso, merecem punição mais severa, a qual punição, pode o direito penal fornecer.

Como conseqüência, os "garantistas" procuram estruturar um processo penal muito formalizado, que contenha procedimentos rígidos para todos os seus atos. Com isso, procuram ainda mais reduzir o âmbito de atuação do direito penal e garantir - daí o nome - que os acusados de crimes sejam protegidos ao máximo em sua individualidade e situação jurídica; além de somente serem condenados quando não puder mais pairar, no bojo do processo, dúvida empiricamente ou juridicamente relevante sobre o cometimento do crime.

Volarei aos "punitivistas" num instante. A idéia dos garantistas, no entanto, parece lógica, certo? - ao menos no plano processual. Temos de cercar de garantias rígidas todos os acusados de crime; afinal eles estão sob um pesado jugo coercitivo do estado, e precisamos prevenir esta delicada atividade estatal contra injustiças, perseguições, falhas, despreparo, e falta de dedicação humanos, etc. De novo, os "punivistas" sérios também concordam com isso e só disso descordaria(m) os saudosos da(s) ditadura(s) - à esquerda ou à direita. O "garantismo", neste ponto, de novo como sugere o nome, visa apenas a garantir o sujeito de direitos - qualquer cidadão ou habitante do Brasil - contra abusos e malversações de poder - especialmente do poder de punir.

Mas o que acontece quando o garantismo se torna abuso? O juiz federal André Lenart (aqui do Rio de Janeiro) tem um blog chamado "Reserva de Justiça" em que, de vez em quando, coloca histórias dantescas - como a do processo de acusação por homicídio do jornalista Pimenta Neves - de recursos que se multiplicam na mesma instância, debatendo questões que ou já foram apropriadamente resolvidas, ou que, simplesmente, não importam nem para preservar o réu, nem para lhe garantir ampla defesa. Com razão ele critica estes episódios e com razão ele lhos chama pelo pejorativo apelido forense: "chicanas" - se bem que muitas vezes as críticas dele levam a conclusões mais fortes, nas quais ele, com todo o respeito, não tem nenhuma razão.

Garantismo não é chicana e a defesa tem o dever - inclusive legal - de se dar por vencida, quando tiver esgotado seus meios lícitos de impugnação. Injustiças pontuais são inevitáveis, embora muitíssimo lamentáveis e, se houver como prová-las, em algum momento, nem a decisão judicial definitiva - ou não tão definitiva assim - é obstáculo: para o condenado - mas não para a acusação, quanto ao absolvido -, existe a revisão criminal, que serve, justamente, a desfazer uma decisão que se achava definitiva (ou, em linguagem técnica, para desconstituir a coisa julgada) - isso, obviamente, não quer dizer que devamos nos contentar com injustiças, mas somente que, humanos, não podemos aspirar à perfeição: podemos, quando muito, procurar garantir que algumas instituições minorem a quantidade e os efeitos das falhas humanas.

Em todo caso, é preciso que a definitividade da decisão condenatória se deixe produzir, por mais que tal definitividade possa se provar, mais adiante, nem tão definitiva assim. E aqui, a primeira ferradura processual penal: "punitivistas" exacerbados, que acham que qualquer garantia processual é chicana e que pensam - como ouvimos mais do que deveríamos ouvir no foro - que "aos inocentes, a pena mínima" parecem muito distantes, mas na verdade estão muito próximos dos "garantistas" exacerbados, que pensam que qualquer condenação é injusta e autoritária, ou que faz parte da ampla defesa interpor recursos claramente incabíveis ou destituídos de fundamento, apenas para atrasar a definição do processo.

Existe, ainda, uma outra - e talvez mais perversa - ferradura processual. E esta, sinto muito, se deve muito mais aos "punivistas". Muitos dos argumentos anti-garantias processuais mais estendidas e profundas de que estes últimos se valem partem do fato de que, como todos sabemos, embora escritas em normas jurídicas claras, as garantias não valem, totalmente, para criminosos que não têm recursos para arcar com advogados mais bem preparados. Isto porque, digamos, um favelado acusado por roubo, preso em flagrante, tem grandes chances de apanhar e ser torturado pela polícia - afinal, é um "vagabundo" -, de não ter nem considerado seu direito, eventualmente, de responder ao processo em liberdade, de não ter entrevista reservada com o defensor público senão minutos antes de sua primeira participação no processo - quando não há tempo de preparar nenhuma defesa que preste -; enfim, este sujeito, criminoso ou não tem grande chances de não ter quase nenhuma garantia respeitada, inclusive porque muitos juízes, que deveriam zelar por isso, também acham que se trata de um "vagabundo": "quem mandou roubar?"

Pois bem, alguns "punitivistas", especialmente no âmbito do sistema penal federal, que lida com crimes de pessoas de mais recursos e classe social mais privilegiada (crimes do colarinho branco, como definiu um criminólogo americano no meio do século passado); alguns "punitivistas" acham que, como não há garantias para os mais pobres, também não deveria haver para os mais ricos. Usam, ainda, para isso, o contraste flagrante entre abuso de garantias pelos mais ricos e total falta delas para os mais pobres.

Aqui, de novo, embora pareçam ser situações muito distantes, estão elas muito próximas. Garantias são garantias. Elas tem de valer, sem abuso, para ricos, pobres, remediados, brancos, negros, homossexuais, heterossexuais, sulistas, nordestinos, juízes, advogados, empresários, trombadinhas, enfim: para qualquer pessoa acusada de crime. É justamente porque o processo penal se estrutura para a reconstrução fática do evento supostamente criminoso, e para a sua caracterização como, de fato e de direito, criminoso, é justamente por isso que não importa quem pode ou não pode pagar advogado, quem tem ou não tem dinheiro. O que importa - e é papel do juiz zelar por isso - é que as garantias processuais do acusado sejam efetivamente levadas em conta, não importa o quão inúteis pareçam ao juiz ou à acusação. É a única parte da estrutura processual que é despersonalizada, ou seja: que não depende de avaliação subjetiva de um pessoa investida de autoridade.

Quem aponta para o fato de que as garantias não valem para os pobres, como crítica ao fato de valerem - às vezes demasiado - para os ricos, na verdade, parece não querer que elas valham para ninguém; parece querer que os ricos fiquem iguais aos pobres, submetidos à autoridade desmesurada do estado, e não o contrário. Pois é o contrário que quebra a distância aparente desta ferradura e igualiza as situações: garantias para pobres e ricos. Direito penal pode ser instrumento de controle social, mas certamente não é instrumento de justiça social - nem num sentido, nem em outro da pirâmide social.

João Pedro Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Breno Melaragno Costa no "Jornal das Dez"

O advogado Breno Melaragno Costa, sócio do escritório Melaragno Costa e Pádua Advogados Associados e colaborador deste blog, estará hoje no programa Jornal das Dez, que passa às 22h, no canal de TV à cabo Globonews. O tema da entrevista será o sigilo das comunicações telefônicas e a sua quebra, em vista de recente matéria da grande imprensa que dá nota de interceptações telefônicas ("grampos"), aparentemente ilícitos, feitas nos telefones do min. Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal. Há reprises do programa em outros horários no mesmo canal. Para saber destas reprises, consultem a grade da emissora.

Comentários às declarações de Breno Melaragno Costa poderão ser feitas neste blog. Perguntas adicionais sobre o tema poderão ser feitas a ele no endereço escritorio@melaragnocpadua.com.br, e serão respondidas oportunamente.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Algemar as algemas?

Hoje, o Supremo Tribunal Federal aprovou um novo verbete da sua súmula vinculante - me perdoem os não-especialistas que me lêem, mas não vou explicar o que é a súmula vinculante; quem quiser ter uma idéia, leia o art. 103-A da Constituição de 1988. Trata-se do verbete n.º 11, que diz o seguinte:

"só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado."

Este novo verbete foi aprovado por proposta do min. Marco Aurélio Mello, relator do HC 91.952, no qual o plenário do STF, por unanimidade, anulou um julgamento feito em um tribunal do júri do interior de São Paulo. O argumento foi que o uso de algemas no réu durante o julgamento perante o júri, porque injustificável, acabou prejudicando-o, que teve uma imagem de incontrolável passada aos jurados. Antes disso, o único precedente recente do mesmo tribunal fora o HC 89.429, relatado pela min. Carmen Lúcia, perante a Primeira Turma, e julgado em 22.08.2006.

Como todos deve saber - e aqui também os não-especialistas - toda a controvérsia em torno do uso de algemas vem de recentes operações grandes, principalmente da Polícia Federal (PF), nas quais todos os presos provisórios ou temporários acabaram sendo algemas, independentemente de sua periculosidade. Por outro lado, obviamente, muitas vezes - talvez a maioria - tais expedientes eram uma forma de a PF compor o seu quadro dramático e alegórico dos mocinhos prendendo os bandidos, nomeadamente os bandidos endinheirados, do colarinho branco. Foi esta a questão naquela útlima decisão citada (HC 89.249): a primeira turma concedeu salvo conduto ao paciente para que este não fosse algemado ou exibido à imprensa desmedidamente, pela PF.

E aqui, não nas algemas, está a grande questão. Antes, anoto que, interessantemente, a decisão que motivou o verbete da súmula vinculante em questão não foi tomada em favor de réu ou indiciado do colarinho branco, mas em favor de um cidadão pobre, para anular o seu julgamento perante o tribunal do júri de uma comarca do interior. Também é digno de nota o fato de que ao menos este verbete n.º 11 da súmula não obedece a um dos requisitos para edição de verbetes de súmula vinculante, qual seja: o de existirem "reiteradas decisões sobre matéria constitucional", como diz o art. 103-A, citado acima - devo este argumento ao meu amigo e diligente procurador da república, já citado neste blog, José Schettino.

Mas eu dizia que a grande questão não são propriamente as algemas para os presos - qualquer que seja o seu status -, mas o uso que se faz das algemas. O problema, como sempre no Brasil, está no desvirtuamento de um instrumento pertinente e comum à cultura ocidental como um todo. Pelo que sei, vários outros países do Ocidente fazem uso regular das algemas, para qualquer preso, quando em trânsito. As algemas não servem para humilhar, mas para simbolizar que o estado está na custódia daquele cidadão, o qual, por sua vez, perdeu parte de sua liberdade, posto que provisoriamente, conforme o caso, para o estado. Está este, portanto, não só legitimado a reduzir a liberdade do cidadão específico, mas obrigado a garantir-lhe a segurança e a custódia.

Por outro lado, também pelo que sei, em hipótese alguma se admitem as algemas perante a justiça - ou seja: em audiência judicial -, tampouco quando o custodiado está detido estaticamente em algum lugar. Nestas oportunidades, ele é, salvo a sua detenção em algum lugar confinado em um espaço específico, livre para se movimentar. Especialmente perante a justiça, o simbolismo tem de ser o inverso do que as algemas trazem: perante a justiça qualquer cidadão, justamente porque titular de direitos e garantias que o tornam autônomo - livre e igual aos seus concidadãos -; perante a justiça, dizia, ninguém pode estar preso. A justiça vem para ouvir o homem como cidadão autônomo; vem para lhe conceder a palavra e, assim, simbolicamente (re)constituí-lo ser livre e igual a todos os outros, ainda que, momentaneamente, esteja limitado, por qualquer motivo, em sua liberdade de ir e vir.

Portanto, o problema das algemas é, antes de tudo, um problema de abuso. Que se usem, com parcimônia, na segurança de presos e agentes. Mas que se respeite, em qualquer caso, a autonomia do sujeito, o que significa: (i) a não-utilização das algemas excessivamente apertadas, como um "corretivo"; (ii) a não-utilização das algemas para promover o simbolismo da pena antecipada e da humilhação pública, não importa de quem seja; e (iii) a vedação absoluta de sua utilização perante a justiça, a quem, justiça, justamente, se comete a difícilima e relevantíssima tarefa de acertar, pela controvérsia da lide penal, a correção jurídica da constrição à liberdade que permitiu o uso de algemas em primeiro lugar.

Para evitar este tipo de abuso, muito dificilmente uma justificação por escrito (antes ou depois de algemar?) seria minimamente eficaz.

João Pedro Pádua
http://www.melaragnocpadua.com.br/

segunda-feira, 28 de julho de 2008

O juiz e a justiça

"Aquele magistrado que, antes de lhe chegar às mãos os autos de um processo criminal, com todas as suas peculiaridades e minúcias do caso concreto, tenciona reprimir o crime a, assim, banir uma particular injustiça, quer por força de um compromisso moral, quer psicológico ou mesmo religioso, pode ser tudo, mas não será uma juiz."(grifo do autor)

Eu até gostaria que fosse eu o autor da citação acima. Mas, infelizmente, não sou. O que talvez choque os meus leitores - especialmente os criminalistas - é o real autor do parágrafo transcrito: trata-se do procurador da república Rodrigo de Grandis, de São Paulo, que atua pelo Ministério Público Federal na acusação do caso (inquérito, por enquanto) que envolve, entre outros, o banqueiro Daniel Dantas.

Não, eu não vou escrever sobre a querela entre o juiz Fausto Martin de Sanctis e o ministro Gilmar Mendes, tão acrimoniosa que já deu até representação por crime de responsabilidade (ou, popularmente, "pedido de impeachment"), contra este último, no Senado, arquivada embora, a esta altura. Mas, me desculpe o juiz Fausto de Sanctis - ou, em juridiquês, data maxima venia -, eu vou falar sobre a atitude dele na conduação deste processo. Entendam-me bem, não faço isso para criticar especificamente o juiz Fausto de Sanctis, mas, já que ele ficou famoso, vou me permitir usá-lo de protótipo para uma atitude cada vez mais comum entre juízes - federais ou não, de primeira instância ou não - e, diga-se logo, cada vez mais incompatível com a posição de um juiz, ao menos no processo penal.

Como bem disse o procurador de Grandis no mesmo artigo do qual saiu a citação acima (Revista Brasileira de Ciências Criminasi, número 71), o juiz não deve ter compromisso com a luta contra o crime. Como assim? - perguntará o estupefato leitor. O juiz não é um membro do poder público? Não é justamente ele,quem aplica a pena? E não é missão do poder público reprimir o crime? Como, então, não tem ele compromisso com a luta contra o crime?

Não vou negar o valor da linha socrática de indagações acima. O próprio juiz de Sanctis parece usá-la implicitamente quando justificou sua conduta na operação - que nome infeliz! - "Satiagraha" - parece sânscrito... - da polícia federal, na qual preso, entre outros, o banqueiro Daniel Dantas. Disse ele:

" Viver em paz e livre requer muitas vezes dos que se esquecem dos preceitos sociais legítimos a resposta estatal. Não se pode rivalizar com as pessoas de bem.
As custódias cautelares (legalmente previstas) decorrem, apesar da excepcionalidade, do destemor e desrespeito às instituições regularmente constituídas no país, para que as atividades de persecução estatal tenham seu curso natural." (para o texto na íntegra, clique aqui)

Vejam todos que o "curso natural" da persecução estatal, na leitura do juiz Fausto de Sanctis - e de muitos de seus colegas, talvez a lamentável maioria - é a prisão do perseguido. O curso não-natural, por exclusão, é a absolvição, portanto. Isso sem embargo de a nossa constituição dizer que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória" (art. 5º, LVII).

Esta norma existe, caro leitor, não para "proteger bandido", mas porque sabiamente e ao contrário do nosso personagem judiciário, a nossa atual constituição soube reconhecer que não existe um fim "natural" da perseguição (ou persecução) penal. Tanto ela pode desembocar na condenação, quanto na absolvição. Ao processo penal, para ser devido processo (due process), deve estar assegurada a possibilidade da surpresa; ou seja: o processo não pode começar nem pendendo para um lado, nem para o outro, senão deve pender, para qualquer dos lados, somente após o seu encerramento como evento jurídico de produção de correção normativa e de verdade -verdade processual, bem entendido, já que a "verdade real", de que tanto falam os manuais de processo penal, só quem vai saber, se tanto, são o acusado, sua vítima direta (se houver) e, para quem acredita, Deus.

E quem garante este não-pender para nenhum dos lados? Acertou quem respondeu "o juiz". O juiz é um órgão do estado, conforme, de novo, diz a Constituição de 1988 (art. 92). Ele, portanto, como membro do poder judiciário, exerce função de estado. Em que consiste esta função - no processo penal, para facilitar a nossa vida? Consiste em assegurar o exercício de humilidade de poder que o próprio estado impôs a si próprio. Veja: o estado detém o monopólio do exercício da violência como coerção legal e normativamente correta. A princípio, o próprio estado pode aplicá-la a quem quer que tenha praticado um ilícito. Em muitos momentos, o estado o faz, por assim dizer, diretamente, como, por exemplo, ao aplicar uma multa administrativa sobre um açougue que descumpre as normas sanitárias a que está sujeito.

No caso da sanção penal, por ilícito penal (crime ou delito), no entanto, não há a possibilidade desta aplicação direta. Como a pena criminal é especialmente grave, em regra - a privação da liberdade -, o estado, em exercício de humildade, comete a um órgão seu, distinto do que aplica a lei diretamente, o que dogmaticamente chamamos "prévio acerto de legalidade do ato". O juiz, apesar de, performativamente, aplicar a pena criminal e fazê-la eficaz concretamente, o faz não por ser o órgão que deve "proteger" a sociedade do crime, mas, ao contrário, por ser o órgão que deve limitar a atuação do estado e garantir que, no caso concreto "com todas as suas peculiaridades" - disse sabiamente o procurador de Grandis -, a pena é devida, normativamente correta, segundo uma verdade processual obtida no confronto argumentativo entre a palavra da acusação e a palavra da defesa, em igualdade de condições, dadas as suas naturais deferenças.

O juiz, portanto, não coopera com a segurança pública, senão limita a atuação do estado também neste campo, e assegura a sua correção, no ponto final da cadeia de perseguição penal: o processo de declaração da responsabilidade penal ou da sua ausência, com a conseqüente aplicação ou não-aplicação da pena. Na feliz e simples expressão do desembargador Amílton Bueno de Carvalho, do RS, o processo penal equilibrado se dá assim: um acusa (o Ministério Público, de regra), um se defende (o réu), e outro julga (o juiz). Isto existe, justamente, para prevenir injustiças, não para proteger "fascínoras" - ou alguém acha que todos os acusados sempre são culpados e que o Ministério Público nunca erra?

Quando o juiz pensa que deve garantir a "justiça", lida sempre como condenação dos (pré-)culpados; quando o juiz pensa que fazer justiça e mandar todo mundo para a cadeia por ato próprio, não raro concertado com a acusação, este juiz perde a sua nobre e dificílima função. E, é pesaroso dizer, se torna, se não equilibra a balança, peça inútil para o processo.

João Pedro C. V. Pádua
www.melaragnocpadua.com.br

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Drogas, proibicionismo e o Fantástico

Como a maioria deve estar acompanhando, nos últimos dois domingos o programa Fantástico da Rede Globo de Televisão exibiu uma reportagem sobre um tal rapaz britânico viciado em maconha. Segundo contava a reportagem, o vício fazia este rapaz tornar-se agressivo e anti-social, inclusive com relação aos pais. Além disso, sua vida era, por assim dizer, inútil, perdida entre a maconha, outras drogas - o álcool inclusive -, o computador e as brigas com a família e outras pessoas. O vídeo que retrata a suposta história deste garoto foi o mote para uma discussão com especialistas (assim chamados, ao menos) e leigos acerca da melhor alternativa para este garoto e sua família, com alternativas que variavam entre internação e entrega do rapaz à polícia - pela maconha, claro, não pelo álcool, cujo uso não é ilícito...

Para um programa televisivo que já exibiu tantas reportagens interessantes - inclusive uma com reais especialistas em psicologia e psicanálise sobre as possíveis explicações para o comportamento do pai da menina Isabella Nardoni em tê-la, supostamente, matado, matéria que fugia do lugar comum que o demonizava e declarava o mundo "perdido" (clique aqui) - para um programa tão pródigo em boas entrevistas, com especialistas sérios, esta reportagem, sem dúvida, foi uma bola fora. Para começar pela caricatura. A Maconha, uma das drogas que menos gera dependência, e um "risco muito menos sério para a saúde pública do que o álcool e o cigarro [que são drogas lícitas na maioria do mundo ocidental]", nas palavras de um estudo conduzido em nome da Organização Mundial da Saúde em 1995 (clique aqui), recebe nas imagens do vídeo uma carga simbólica de sentimentos negativos que só possui por causa desta sua própria simbolização social. Ou seja, quanto mais se associam imagens como a do menino descontrolado do Fantástico à maconha, mais se chega à conclusão de que se trata de um risco incontrolável para a saúde pública e para a sociedade. Não é à toa que durante muito tempo as marcas de cigarro associavam simbolicamente o seu produto à liberdade de cavalos selvagens, jipes no deserto e botes em rafting. Também não é à toa que as marcas de cerveja ou de outras bebidas alcoólicas associam o seu produto a mulhers esculturais, a festas animadas ou a relaxamento em relação às agruras do dia-a-dia.

Esta associação simbólica (re)cria a valoração social que recai sobre qualquer coisa - atividade, produto, processo - que tem na sociedade e na cultura desta sociedade o seu contexto significativo, o seu pano de fundo semântico. A maconha é ilícita porque é, no final das contas. Fazer mal, o álcool e o cigarro também fazem - e muito mais do que a maconha, segundo reconhece o nosso Ministério da Saúde (clique aqui). Mas a maconha é "diabólica", a maconha "destrói a nossa juventude", a maconha cria monstros como o tal inglês do vídeo. Será mesmo?

O psicólogo Luiz Paulo Guanabara, presidente da Psicotropicus, uma associação que se dedica à reforma da política de drogas no Brasil - e da qual este escriba é diretor jurídico - escreveu uma carta à produção do programa em questão alertando sobre o sensacionalismo inserto e explícito na referida matéria. A carta dele não só coloca em dúvida a autenticidade do vídeo do rapaz inglês, mas também coloca a questão no seu devido lugar e denuncia as falácias implicadas na tomada de posição do Fantástico. Segue a íntegra da carta:

" VÍDEO SOBRE MACONHA EXIBIDO NO FANTÁSTICO
PARA AMPLA DIVULGAÇÃO
Aos Produtores do Fantástico, Rede Globo de Televisão
Domingo, 06 de julho de 2008
O programa Fantástico há anos tem exibido excelentes matérias e informações de utilidade pública. Mas a peça de desinformação e de demonização da maconha aparentemente feita na Inglaterra e exibida neste domingo é propaganda barata, ridícula e mal feita. O apresentador começa dizendo que a pessoa pode ficar até dois anos presa por consumir maconha naquele país. Aqui no Brasil, de acordo com a lei de drogas em vigor, o “maconheiro” não é preso. Será que na Inglaterra a sanha punitiva chega a ponto de encarcerar por dois anos quem fuma maconha? Claro que não.
Em seguida foi exibido aquele vídeo lamentável, uma peça de propaganda que contribui para o sensacionalismo jornalístico que vende essa desinformação para uma população que não tem a menor noção dos verdadeiros perigos do uso de drogas.
O simples fato de falar de drogas como se todas fossem iguais, como se a maconha acarretasse os mesmos riscos que a cocaína, por exemplo, é outra mentira corrente na mídia, que ao longo dos anos fortaleceu essa noção equivocada no imaginário da população: a da existência de um inimigo abstrato chamado DROGA.
O vídeo é uma armação barata. Será que alguém é idiota a ponto de produzir provas contra si mesmo se deixando gravar num vídeo e correr o risco de ser preso por dois anos, segundo a matéria? O garoto foi preso? Não deveria ter sido preso imediatamente depois que o vídeo foi divulgado? E os amigos que aparecem no parque consumindo com ele, se deixaram ser filmados assim numa boa? Queriam se exibir para seus pais e professores? Queriam que todos vissem que estavam cometendo um crime?
Todo mundo sabe que a garotada que fuma maconha busca esconder isso dos pais, dos professores e de todo mundo. Quem fuma maconha em geral só revela isso para outro fumante. Nem para seu médico ele informa, com medo de ser discriminado, com medo do preconceito, um dos males de essa planta ser proibida.
É desanimador que peças de propaganda contra a maconha iguais às do começo do século passado continuem a ser produzidas e exibidas em pleno século XXI. Só faltou o adolescente matar os pais e ir ao cinema, ou dizer que maconha desenvolve peitos em homens, como faziam as peças publicitárias antimaconha daquela época. O vídeo é mal feito, a continuidade é desastrosa. O garoto de repente compra uma moto trabalhando como jardineiro. Se ele vivia “chapado” e não fazia nada, como conseguiu comprar uma moto? Ele não gastava todo seu dinheiro em maconha, como afirma o vídeo?
Qualquer pessoa que conheça um pouco os efeitos das drogas sabe que para ficar descontrolado daquele jeito só tendo algum problema mental ou usando outras drogas mais fortes, como o álcool. A mãe do menino diz para ele numa cena que ele sempre volta pra casa bêbado e sob efeito de maconha. Mas se ele bebia, não importa, o que interessa é demonizar a “droga”.
E seu comportamento agressivo, desenvolvido em apenas seis meses, pois antes era um atleta e estudante exemplar? “A maconha me relaxa”, relata o menino ao psicólogo que os pais chamaram para intervir. É uma mentira deslavada dizer que a maconha é responsável por comportamentos agressivos e por uma transformação dessa.
E as cenas de consumo explícito de maconha? Os closes do garoto fumando? Que pais exporiam seus filhos assim, e que adolescente se sujeitaria a ser gravado daquele jeito? Com pais como esses, não é à toa que o adolescente estivesse descompensado.
A votação em que os telespectadores escolheram “internação” foi surreal. O debate que se seguiu ao vídeo também. Será que os profissionais que opinaram não perceberam o engodo? A coisa toda seria um grave acinte à inteligência do telespectador, se este tivesse informação honesta sobre as drogas. E com certeza a grande maioria das pessoas bem informadas não percebeu a calculada propaganda antimaconha do vídeo exibido. O folclore da “erva diabólica” já está bem arraigado em suas cabeças.
Produtores do Fantástico, por favor, não exibam a continuação dessa porcaria prevista para o próximo programa.
Luiz Paulo Guanabara
PEDIMOS que divulguem essa carta. Para fazer sua crítica direta: http://fantastico.globo.com/ NÃO podemos deixar que peças publicitárias nefastas e mentirosas como essa continuem a ser exibidas sem críticas e indignação. Quem viu o vídeo GRASS (Super Interessante, editora Abril) vendido nas bancas de jornal, pode reconhecer na matéria do Fantástico o mesmo tipo de mentira das propagandas antimaconha estadudinenses ali exibidas.
Luiz Paulo Guanabara Psicotropicus - Centro de Políticas de Drogas Av. Presidente Vargas 590 - sala 515 20.071-000, Rio de Janeiro, Brasil Tel: (55-21) 3553-0722 www.psicotropicus.org "

João Pedro C. V. Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)

terça-feira, 1 de julho de 2008

O eleitor e o cidadão: ainda em busca da autonomia

De volta, depois de um tempo de falta de tempo - com o perdão do paradoxo -, uma questão razoavelmente antiga, mas ainda importante, merece os nosso comentários. Estou falando da questão da moralidade como requisito para o deferimento da candidatura eleitoral. A questão não é nova, porque desde pelo menos a útlima eleição alguns Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) entenderam indeferir o registro da candidatura de postulantes que tivessem processos em andamento perante e Justiça Penal - a popularmente chamada "ficha suja". Tais postulantes recorreram, a questão chegou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e, finalmente, eles conseguiram ter as suas candidaturas registradas (TSE, RO n.° 1.069, rel. min. Marcelo Ribeiro, j. 2006). Já naquela época, em que se tratava de eleições mais importantes, por assim dizer, porque envolviam cargos de maior hierarquia na estrutura federativa brasileira, muito se chiou, principalmente na grande imprensa, contra a decisão do TSE. O argumento não-jurídico, repetido agora, ia mais ou menos assim: como pode a justiça permitir que pessoas que respondem a diversos processos penais se candidatem a um cargo de poder republicano? E o argumento jurídico: sendo a moralidade e a proibidade requisitos para a capacidade eleitoral passiva - elegibilidade - (art. 14, § 9° da Constituição de 1988) os candidatos que tinham "ficha suja" não poderiam ser eleitos, haja vista que não preenchiam tal requisito.

Nas vindouras eleições, novamente a questão vem à tona. Só que, agora, há uma espécie de disputa institucional dentro da magistratura a seu respeito. É que, de novo, o TSE, por uma ainda mais apertada maioria (4 a 3) decidiu ser inconstitucional o indeferimento do registro da candidatura de alguém com base em apreciações sobre a sua folha de antecedentes criminais ou sobre a lista de processos a que esse alguém possa estar respondendo. A diferença, como dito, é que a decisão, desta vez, gerou uma reação múltipla em várias frentes institucionais. O próprio presidente atual do TSE, min. Carlos Britto, já deu mais de uma entrevista dizendo que discorda da decisão - posição, de resto, já manifestada em voto vencido no julgamento acima citado. Também a grande imprensa vem se posicionando cada vez mais claramente contra a mesma decisão, alegando que macula a lisura eleitoral e fomenta a corrupção. Da mesma maneira, o Colégio de Presidentes dos TREs se posicionou contra ela (clique aqui) e já disse que apóia que os TREs não sigam a orientação do TSE - o que, na prática, pode inviabilizar uma campanha eleitoral, paralisada até que o demora TSE reforme a decisão inferior, algo, inclusive, expressamente levantada pelo presidente do TRE/RJ, des. Roberto Wider. Por fim, e também ativamente contrária à orientação do TSE, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) lançou um sítio na internet em que, além de fomentar o combate à corrupção eleitoral, há um link para uma lista de candidatos que respondem a processos na justiça (clique aqui).

Obviamente, a mobilização da sociedade civil - ainda que por meio de magistrados - apontando para a necessidade do voto consciente e da luta contra a corrupção político-eleitoral é louvável. Contra isso, nem os sólidos e corretos argumentos jurídicos vencedores nas decisões majoritárias do TSE - o principal: não existe causa de inelegibilidade na Lei Complementar 64 de 18.05.1990, regulamentadora do citado § 9° da constituição, que preveja a hipótese da "ficha suja" ou processos em andamento; o segundo: direito à presunção de inocência (art. 5°, LVII da Constiução de 1988) -; contra isso, nem tais argumentos podem constituir instrumento válido de crítica. Toda mobilzação social para debate de idéias e formação político-social de opinião e vontade devem ser valorizados, venha de que setor social venha.

O problema político, mais importante do que o jurídico, neste caso, e do ponto-de-vista da democracia, é que a mobilização contra o deferimento da candidatura dos "fichas-sujas" não vem em favor da liberação da formação democrática da vontade eleitoral, senão vem para considerá-la viciada por presunção e carente de tutela. Veja o caro leitor: qual o fundamento - político - para declarar inelegíveis - ou seja lá o termo de eufemismo jurídico que se queira - candidatos que ainda não perderam seus direitos eleitorais como efeito de uma condenação penal ou de improbidade administrativa? Em outras palavras, a que serve, politicamente, o embarreiramento da candidatura de quem tem processos contra si em curso?

A resposta é simples: o medo de que candidatos nessa situação sejam eleitos e, uma vez empossados, além de terem mais acesso a fontes de corrupção, ainda gozem de eventual foro privilegiado. Simples mais insatisfatória. Notem que, para qualquer pessoa ser eleita, com o perdão do truísmo, é necessário que ela alcance uma votação tal que a permita ser declarada eleita - majoritária ou proporcionalmente. Isso quer dizer que é preciso que as pessoas, os eleitores, os cidadãos, efetivamente, votem no tal candidato; e votem em um bom número - à parte, por óbvio, o abuso de poder político ou de poder eleitoral, estas, sim causas legais expressas de inelegibilidade. Então, o medo é de que os eleitores, os cidadãos, sejam iludidos por estes candidatos "sujos", os quais candidatos acabariam, com isso, eleitos. Ora, isso equivale a dizer, como mencionado acima, que os pobres eleitores, que não sabem votar, precisam ser "protegidos" desta influência eleitoral indevida. E quem os protegerá, senão o poder judiciário, o pai de todos os "pobres" cidadãos, e guardião da moral e da ética social - especialmente no que tange às eleições?

Será que, um dia, vamos achar que o cidadão deve poder escolher votar no candidato que ele quiser, independemente da apreciação judiciária - sempre demasiado subjetiva - sobre a ética ou a moral deste candidato - excluídos o caso de perda de direitos políticos por efeitos legais diretos da condenação, conforme já dito? Será que um dia vamos considerar que pedagogia cívica só se dá - só se pode dar - com autonomia privada e autonomia pública plenamente garantidas e que, do contrário, temos, ao revés da autonomia, tutela estatal, seja em que poder ela estiver? Será que vamos ter, algum dia, um país de cidadãos?

João Pedro C. V. Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)

* * *
Em tempo: faço coro à deliciosamente capiciosa pergunta do portal Migalhas (http://www.migalhas.com.br/), sobre a atitude da AMB, de, digamos, fiscal eleitoral: será que a AMB vai também fiscalizar o próprio judiciário, fiscalizador das eleições, e colocar em um pomposo anexo do seu site uma lista de juízes que respondem ou responderam a processos - e, quem sabe, representações disciplinares?

terça-feira, 17 de junho de 2008

E a resposta deste que vos fala...

Segue o miolo da resposta que dirigimos ao jornalista Lauro Neto, a propósito do seu desabafo publicado na postagem anterior:

"[...] o seu relato entristece, mas, para nós, que trabalhamos direta ou indiretamente com segurança pública, não chega muito a chocar. Eu, que sou advogado criminalista, já trabalhei em assistência jurídica gratuita nesta área, e vivo e leio de tudo sobre isso, já me convenci de que a mentalidade oficial apenas descreve o que realmente se passa por todo o Rio de Janeiro. Vida de pobre vale menos mesmo, como fez questão de mostrar, em alto e bom som, o nosso secretário de segurança ao se referir à diferença entre matar alguém no morro da Coréia e em um apartamento em Copacabana. O problema, a meu ver, é antes de tudo cultural – embora não exclusivo do Brasil, evidentemente –: brasileiro, cordial que seja, parece precisar de um inimigo interno definido – talvez para se definir psiquicamente como pertencente à comunidade, em face do “estrangeiro”, como já especulava Freud. Quando o inimigo ditadura foi (parcialmente) derrotado, o novo inimigo virou uma figura metonímica e metafórica, dependendo do caso: o “bandido” ou o “vagabundo”. Obviamente, para que a definição pela exclusão estereotípica funcione, é preciso que o “vagabundo” esteja sempre longe, seja sempre o outro, a fim, de resto, de que o nosso próprio sentimento de culpa não nos consuma inconscientemente.

A nossa política de segurança pública, especialmente no Estado do Rio de Janeiro, é uma lástima há muitos anos. Porém, parece, realmente, ter piorado muito nestes anos recentes, notadamente no governo Sérgio Cabral. O enfrentamento desordenado, determinado pela “opinião pública” e pela mídia que escreve para a Zona Sul, como se a aqui se resumisse todo estado – salvo raras e honrosas exceções como essa da sua matéria –, as operações desastradas e inúteis, as centenas de mortes de inocentes favelados com balas perdidas, as execuções mascaradas de legítima defesa contra resistência, enfim: tudo aponta para a falência deste sistema que parece sempre mudar para ficar sempre como está. Verdade seja dita, o Luiz Eduardo Soares sempre procurou apontar estas falhas. Alguns livros dele, especialmente o relato “Meu casaco de general” são particularmente elucidativos para mostrar o quanto é difícil mudar a cultura e a mentalidade institucional (?) na política de segurança pública do Rio de Janeiro, por mais que flagrantemente falida. Eu não sou foucaultiano, mas este quadro bem lembra as descrições históricas de Foucault sobre a afirmação da prisão como pena-padrão no Direito Penal Ocidental: sempre tão ineficiente – e reconhecidamente ineficiente –, mas, em que pese a isso, sempre vitoriosa e afirmada como única saída."

João Pedro C. V. Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Desabafo de um jornalista

Seguem excertos de uma mensagem que recebi, por e-mail, de um amigo, o jornalista Lauro Neto, de O Globo, sobre fatos que ele presenciou no trato que as "autoridades" públicas dispensam aos cidadãos cariocas:

"Caros amigos,
acabo de chegar em casa depois de um plantão que deveria ter durado sete horas, mas durou 14. Pois é. Jornalista não é médico, mas também dá plantão. Pois bem. Acompanhei o calvário de Liliam Gonzaga, uma favelada como outras tantas, que agonizou mais de 30 horas para achar o corpo do seu filho Wellington, morto pelo Exército em conluio com traficantes. Os detalhes, se vocês quiserem, leiam na edição desta segunda [dia 16 de junho de 2008] do Globo.
Durante seis horas, acompanhei a Via Crucis dessa mãe, que poderia ser a minha ou a de vocês, mas era só a de mais um favelado. A diferença é que essa mãe, mesmo na hora do sofrimento, mostrou-se generosa e solidária quando a acompanhei de carona em uma Kombi da 4a DP até um quartel do Exército no Santo Cristo. Ao descer do veículo, ela falou com um dos amigos que seguiam junto: "Paga a passagem do menino aí", referindo-se a mim. Até tinha dinheiro para pagar, mas, desnorteado, aceitei a demonstração de generosidade como quem aceita um chope pago por um amigo no buteco.
Essa mãe, que já havia perdido um filho há dez anos vítima de uma queda da laje, perdeu outro ontem, fuzilado com mais de 20 tiros. O que mais choca é que aqueles que deveriam zelar por nossa segurança estão por aí tirando vidas e se misturando com bandidos, tornando-se parte deles. Ontem, quando estava descendo o Morro da Providência, uma técnica de enfermagem falou a frase que resume meu sentimento desde o início do acompanhamento desse caso: "A ditadura voltou".
E não voltou apenas para os favelados não. Em frente ao quartel do Santo Cristo, um soldado apontando um fuzil para a gente ameaçou os fotógrafos dizendo que se tirassem fotos, iriam meter bala. Não por coincidência, não havia repórteres do jornal O Dia cobrindo esse caso. Vocês devem ter visto que uma equipe deles foi torturada no Batan por um grupo de milicianos.
Só não adianta chorar depois que a morte bater à nossa porta, que fazemos parte de uma elite que assiste a tudo silenciosamente. Aí não terá volta. Será igual ou pior do que há 40 anos.
Isso tudo, meus amigos, para pedir que cada um de vocês faça o que estiver ao seu alcance para mudar a situação em que se encontra o Brasil, e mais especificamente o Rio de Janeiro.
Desculpem o desabafo, mas temos que fazer algo para mudar o país e a cidade que serão habitados por nossos filhos."

quarta-feira, 4 de junho de 2008

"Otoridade"

É interessante como pequenas práticas e usos lingüísticos revelam tanto sobre uma cultura. Isso não é, obviamente, conclusão minha. Muitos autores, principalmente entre antropólogos e lingüistas, buscavam, no uso da língua a chave para compreender a cultura. Isso fundou um método muito famoso em ciências humanas e sociais - a análise do discurso -, permitiu um grande avanço na antropologia estruturalista do início e do meio do séc. XX, e transformou-se em conceito básico de lingüística, a "hipótese de Sapir-Whorf", intitulada de acordo com os dois lingüistas que popularizaram a teoria das implicações recíprocas entre cultura e sistema lingüístico.

Esta muito sumária - e, pois, perigosa - esquematização teórica serve para contextualizar uma conclusão muito sutil a ser tirada de um evento muito grotesco. A maioria dos leitores - certamente todos, dentre os que acompanham futebol - viu a confusão do fim-de-semana passado na partida entre Náutico e Botafogo, no Estádio dos Aflitos, em Recife (PE). Um jogador do Botafogo, visível e excessivamente nervoso, após ser expulso de campo, hostilizou a torcida adversária com o famoso gesto (obsceno?) fálico do dedo médio em riste contrastando com o resto dos dedos recolhidos ao punho. Como a troca de hostilidades entre jogador e torcida continuva, mesmo com o jogador expulso, a Polícia Militar local achou por bem intervir para procurar, digamos, demover o referido jogador botafoguense da idéia de continuar a "intercambiar" gestos agressivos e xingamentos com a torcida adversária. O jogador, por sua vez, diante da abordagem, digamos, "invasiva" da PM de Recife, passou a, também ostensivamente, se recusar acompanhar os policiais. Chegou mesmo a obter ajuda física de seus colegas de time, diante da tentativa de praças da PM de imobilizá-lo à força. Bem a história continua e tem suas nuanças interessantes, que, no entanto, são mais bem vistas em imagens (para ver as imagens, clique aqui). O que aqui nos interessa é que, ao final, o tal jogador acabou preso, junto do presidente do clube. E o que ainda mais nos interessa é como a mídia e os debates e conversas públicas informais nomeavam o crime de que fora o jogador acusado: desacato à autoridade.

O Código Penal brasileiro vigente é híbrido: metade dele, a primeira metade, que dita as normas gerais do direito penal, por isso chamada "Parte Geral", é fruto da Lei n.º 7.209 de 11.07.1984. A segunda metade, que define os crimes e prevê as penas, suas causas de aumento e diminuição, por isso chamada "Parte Especial", permanece predominantemente, a do Decreto-Lei n.º 2.848 de 07.12.1940. Obviamente, o momento político e jurídico do Brasil mudou - talvez não tão radicalmente - nos mais de 50 anos que separam as duas datas. Mas o crime em questão estava previsto desde 1940 no atual código. Fora, por aquele decreto-lei, batizado com nome simples: desacato, no art. 331. Mesmo estando o Brasil, naquele dezembro de 1940, imerso no auge de uma ditadura de orientação fascistóide, mesmo assim o crime não foi previsto como "desacato à autoridade", mas, simplesmente, como desacato. Aliás, pode ser vítima deste crime qualquer funcionário público, quer possua ou não autoridade discricionária alargada. Desde o oficial de cartório, até o presidente da república, passando pelo atendente do protocolo, pelo secretário, pelo titular de função pública temporária; enfim, todos os funcionários públicos (a definição legal está no art. 327 e parágrafo único do Código Penal) podem alegar ter sido vítimas de desacato, e qualquer pessoa pode cometê-lo.

No caso do jogo de futebol, aparentemente, a vítima de desacato foi uma policial militar que fazia o policiamento ostensivo dentro do campo de jogo. Por estar nesta função, presume-se que ela seja praça, e não oficial, razão pela qual é discutível que ostentasse a posição de autoridade. Se ser autoridade fosse elemento essencial do crime de desacato, provavelmente não haveria crime neste caso - e o jogador do Botafogo teria saído sem maiores dores de cabeça do Recife. No entanto, em um país em que todos são doutores - do advogado ao fisioterapeuta -, também todos têm de parecer ser - ao menos no Código Penal - autoridades. Será que, um dia, vamos todos querer ser cidadãos?

João Pedro C. V. Pádua

(www.melaragnocpadua.com.br)

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Um grande abraço,

Breno Melaragno Costa e João Pedro C. V. Pádua

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Bandidos e mocinhos (ou a derrocada do "cidadão-de-bem")

(Esta postagem é dedicada ao meu grande amigo e longevo defensor dos direitos humanos Leonardo Castilho, que me cobrou uma posição sobre o assunto. Então, vamos lá.)

Normalmente, advogados criminalistas tendemos a nos posicionar a favor da defesa, quer dizer, a favor dos acusados. Chamem a isso cacoete profissional ou qualquer outro nome, fato é que, a princípio, a maioria dos advogados, acostumados a trabalhar pelo acusado, procuramos apontar falhas na acusação, ou a necessidade de relativizar alguns desejos sócio-culturais vingativos e maniqueístas, normalmente fomentados por uma cultura da luta entre "bandidos" e "mocinhos", em que todos nós, ocidentais, acabamos, normalmente por bons motivos - afinal, temos de aspirar a ser "mocinhos", para a boa ordem social - , socializados. A crença no absoluto deste binômio, no entanto, costuma trazer grandes decepções e grandes hipocrisias.

De todo modo, quando nós, advogados criminalistas, começamos a fazer um discurso semelhante ao que ensaiei acima, logo vem, da maioria do nosso meio de "cidadãos-de-bem", uma dura crítica, quando não uma irada saraivada de insultos, que vão desde "defensor de bandidos" ou "adepto de fascínoras" - como diria o folclórico ex-deputado, não tão saudoso, Amaral Netto -, até o tradicional argumento retórico, "e se fosse a sua(eu) filha(o)?".

Quando confrontados com uma situação como estas, em debates formais ou rodas de bar, nós, advogados criminalistas, constrangidos, constumamos argumentar que, em primeiro lugar, este tipo de indignação, fruto de uma mescla de desejos incoscientes, afetos e sentimentos mais ou menos conscientes, casa bem com o sujeito vítima de crime, ou com seus próximos, mas não pode ser critério de gestão política em segurança pública, muito menos critério para princípios que norteiem a legislação penal. Políticas públicas e legislação têm de ser fruto do debate mais consciente - e, logo, racional - possível, aberto aos plurais pontos-de-vista sociais, inclusive as histórias pessoais de vitimização, mas nunca feitos com base somente nestas últimas, aos moldes do improviso, de fragmentaridade, e do imediatismo que Luiz Eduardo Soares tanto e tão bem criticou nas políticas de segurança pública brasileiras.

Também procuramos argumentar, no plano mais jurídico, que um estado de direito, ou seja, um estado que funciona sob regras jurídicas democrática e previamente concebidas para a delimitação da atuação do poder coercitivo (legítimo, pois) do estado; o estado de direito necessita de algumas garantias formais contra o abuso, possível e historicamente constante, do poder de punir que este mesmo estado detém em face de quem tenha cometido um crime. Nesta linha de garantias, incluem-se a vedação à punição anterior ao fim de um processo penal, a igualdade de armas no processo entre acusação e defesa, a ampla liberdade probatória, a imparcialidade do julgador e, para o que mais no interessa - já veremos por quê -, a vedação à consideração da culpa de alguém, antes que um processo penal democrático tenha transcorrido até o final (normalmente referida como presunção de inocência). Afirmamos, além disso, que estas garantias não foram feitas "para proteger (direitos humanos de) bandidos e fascínoras", mas, ao contrário, para garantir a maior taxa possível de legitimidade das condenações penais, obtida esta legitimidade ao custo de que se evite ao máximo que alguém seja processado e condenado à prisão por um crime que não cometeu.

Como, finalmente, a esta altura, não conseguimos convencer mais do que uma meia dúzia de interlocutores, já que temos uma concorrência quase-desleal com os verdadeiros romances exibidos pela grande mídia, tendentes a fazer qualquer pessoa se ver na qualidade de vítima de crimes bárbaros, mesmo que more no Leblon e nunca tenha sido sequer furtada na vida; a esta altura, nós, advogados criminalistas, lançamos mão de dois outros argumentos sentimentais de contra-retórica: o primeiro, o de que os tais "mocinho" ou "cidadão-de-bem", embora ficções necessárias para a socialização de bons cidadãos, cumpridores da lei, não passam disto: ficções. Não existe o "cidadão-de-bem" e a mera referência ou auto-referência nestes termos somente mostra o quão seletiva é a criminalização das pessoas. Um série de condutas bastantes corriqueiras e mesmo toleradas socialmente - algumas graves, algumas nem tanto - é crime segundo a lei brasileira, do gesto obsceno aos crimes tributários, passando por crimes contra a honra, câmbio ilegal e corrupção, e a maioria, senão a totalidade dos auto-proclamados "cidadãos-de-bem" já praticou alguma delas. O único motivo pelo qual não foram presos ou processados é que eles não são a "clientela" do sistema penal, não são normalmente etiquetados como "criminosos" e não têm os holofotes das autoridades penais voltadas para si. Neste sentido, crime comete o outro: o que nós fazemos é "sobreviver" neste "estado desorganizado e voraz", e perante esta "sociedade caótica", em que "ninguém respeita mais ninguém"...

Como este argumento é meio bombástico e razoavelmente mal-recebido, o nosso segundo argumento contra-retórico é perguntar, na linha dos nossos críticos, "e se o seu(ua) filho(a) ou parente próximo ou amigo próximo fosse acusado de crime?" Certamente, todos os nossos interlocutores respondem que quereriam um processo justo, com garantias e igualdade, especialmente contra prisões arbitrárias e desnecessárias, bem como contra invasões excessivas ou indevidas sobre a privacidade ou os bens do acusado.

E eu falei tudo isso, Leo e todos os meus leitores, porque vou, agora, e rapidamente, defender o Álvaro Lins - processualmente, haja vista que não conheço o teor das investigações. Não sem antes tripudiar um pouquinho é verdade. Afinal, ele não está me pagando para defendê-lo. Pois é, quem lembra do Álvaro Lins como chefe de Polícia Civil, lembra da sua gana de vociferar contra os "bandidos", contra "os marginais", que deveriam ser impiedosamente perseguidos e punidos. Em mais de uma manifestação oral ou escrita ele defendeu a "tolerância zero" para a "bandidagem" e bradou a favor de punições mais severas. Mas eis que o mundo dá voltas e quem foi o criminoso da vez? Álvaro Lins. Acusado de uma série de crimes, que incluem corrupção passiva, lavagem de dinheiro e quadrilha, o ex-chefe de Polícia Civil do nosso estado acabou preso em flagrante, pela Polícia Federal, no apartamento onde mora, durante o cumprimento de mandado de busca-e-apreensão.

Mas eis que, de novo, quis o irônico destino que Álvaro Lins fosse vítima de uma prisão em flagrante totalmente, completamente, indubitavelmente, arbitrária e ilegal. Ora, pelo que vimos nos jornais - o.k., sei que sempre plantei a dúvida sobre estas notícias, mas não temos nenhuma outra fonte a que recorrer, no momento -, o flagrante se constituiu, na leitura lamentável da autoridade policial federal que presidia o ato, pela descoberta de documentos que indicavam ser o apartamento onde se encontrava o nosso personagem objeto de lavagem de dinheiro. O detalhe óbvio é que a lavagem de dinheiro, se de fato ocorrida, ter-se-ia dado algum tempo antes. Ora, de novo, como diria o Conselheiro Acácio - que, certamente, ao contrário de alguns membros da Polícia Federal, leu o Código de Processo Penal brasileiro (CPP) -, requisito básico do flagrante é a flagrância; isto é: a ocorrência do crime quase que imediatamente anterior à, ou no momento da, declaração da prisão. Não é flagrante a descoberta de indícios da ocorrência de um crime dias, semanas ou meses antes, não importa o quão fortes sejam ditos indícios. Verdade, o CPP até prevê uma hipótese de flagrante presumido (art. 302, IV), mas, também aqui, é preciso que a prisão seja, como diz o código, "logo depois" de ter cometido o crime, e que o preso esteja portando coisas que façam presumir ser ele o autor do crime, cometido logo antes. E isso não tem nada que ver, ao contrário do que pensaram os nossos zelosos deputados estaduais, com o fato do crime ser ou não "inafiançável" - até porque não são só inafiançáveis os crimes assim declarados pela constituição, mas também os assim enquadráveis nos critérios do art. 323 e 324 do CPP.

A prisão do - e o processo penal contra - nosso combativo ex-chefe de Polícia Civil, então autoridade máxima encarregada de investigar ilícitos penais, é, felizmente, uma grande morte simbólica ao "cidadão-de-bem". O fato de que ele tenha sido preso ilegalmente é, infelizmente, uma grande morte simbólica do estado de direito.

João Pedro C. V. Pádua
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quinta-feira, 29 de maio de 2008

Advogado João Pedro C. V. Pádua conclui mestrado em ciências jurídicas

Com a aprovação da sua dissertação intitulada "A tecnocracia jurídica: a comunidade dos intérpretes do direito e o enfraquecimento democrático" (230 p.), o advogado João Pedro Chaves Valladadares Pádua, sócio de Melaragno Costa e Pádua Advogados Associados, cumpriu o último requisito para a conclusão do curso de mestrado em ciências jurídicas (direito constiucional e teoria do estado), na PUC-Rio, no último dia 19 de maio. A banca que avaliou o seu trabalho foi composta pela profa. dra. Gisele Cittadino (orientadora), prof. dr. Daniel Sarmento (convidado externo) e prof. dr. Francisco de Guimaraens (convidado interno); sua dissertação foi aprovada sem ressalvas. Com esta aprovação, João Pedro C. V. Pádua recebeu o título provisório de mestre em ciências jurídicas (direito constitucional e teoria do estado), que será confirmado após o depósito da versão definitiva de sua dissertação, no prazo de 120 dias.

domingo, 25 de maio de 2008

Dois atos no enfraquecimento democrático pelo poder judiciário

Parece que estamos dançando. Na última postagem, falei sobre dois atos de corporativismo, um na advocacia e um na magistratura. Agora temos novos dois atos, embora, desta vez, venham de uma mesma fonte: o poder judiciário. Desde o ínicio da faculdade de direito aprendemos uma historinha interessante que beira a ficção, tomada do ponto-de-vista da teoria social. Aprendemos que "o poder judiciário é uno". Interessante esta lição, se usamos como ponto de comparação os outros dois poderes do esquema clássico, sistematizado, mas não propriamente criado ou proposto, pelo clássico Barão de Montesquieu. Ninguém diria que o poder executivo ou que o poder legislativo é uno - a discussão é se o Município é um ente da federação, e, portanto, diretamente ligado, em sua autonomia, à União Federal. No entanto, os juristas parecemos aceitar com incofessada facilidade o fato de que o poder judiciário, nada obstante dividido entre um grande ramo federal (ou da União, para ser mais técnico) - que ainda se subdivide em comum, eleitoral, trabalhista e militar - e um grande ramo estadual, presente em todos os estados da federação - e ainda no Distrito Federal, que tecnicamente, faz parte da Justiça da União, mas julga causas estaduais -; nada obstante estas múltiplas divisões, parecemos todos aceitar que "a jurisdição é una"... Vá lá, então, usemos esta ficção contra o objeto da ficção.


Um grande amigo meu, José Schettino, me mandou um e-mail recentemente, em que, mais ou menos, disse "pobre da sociedade brasileira: num mês o poder judiciário de quase todas as capitais dos principais estados da federação impede um movimento concertado para protestar democraticamente contra a proibição da maconha; no mês senguinte o mesmo [uno] poder judiciário resolve declarar incostitucional uma lei que, democraticamente promulgada, reafirma a criminalização do porte de drogas para uso pessoal." Ele tem toda a razão. Vejam os caros leitores que eu, ao contrário do meu grande amigo e sócio, Breno Melaragno Costa, que escreveu sobre isso, neste blog, algum tempo atrás, sou francamente favorável à legalização da maioria das drogas hoje ilícitas, especialmente a maconha. No entanto, a legalização não se pode fazer pelo judiciário, órgão incumbido de aplicar as leis e a constituição; antes, tem de ser feita, com a voz, a palavra, e a participação popular, através dos seus representantes no poder legislativo, que foi quem, primeiro, tornou ilícitas algumas - mas não todas as - drogas, lá no início do séc. XX.


Todas essas elucubrações vêm porque, como a maioria deve saber, o Tribunal de Justiça de São Paulo, que - para não jogarem o meu argumento da ficção da unidade da jurisdição contra mim - havia, junto de outros, por um juiz seu, proibido a marcha da maconha naquele estado menos de mês antes, resolveu agora, por decisão da sua 6ª Câmara Criminal, declarar incostitucional o art. 28 da Lei n.º 11.343/2007, que criminalizava o porte de drogas para uso pessoal. Os argumentos jurídicos, para quem milita na área penal, são os mesmos já conhecidos há algumas décadas, ao menos desde que aparecida a já vintenária Constituição de 1988: princípio da ofensividade ou da lesividade, direito à privacidade, e direito à igualdade - poderiam ser citados também, por exemplo, o princípio da proporcionalidade, o princípio da culpabilidade, direito à liberdade e autonomia privada etc. A análise jurídica destes fundamentos não interessa muito, exceto para notar vários deles são considerados implícitos na ordem constitucional brasileira. Ou seja, é isso mesmo: para você que não é jurista, saiba que os tribunais brasileiros - como vários outros no Mundo Ocidental, é verdade - julgam leis promulgadas pelo Congresso Nacional em votação bicameral inconstitucionais com base em normas que não estão expressas textualmente na nossa constituição, mas que, no seu juízo - freqüentemente não-coincidente com o de outros juristas -, "decorrem do sistema constitucional como um todo".

Aliás, é bom notar, para os que ingenuamente vêm aplaudindo esta decisão como se fora a notícia do ano - alguns, inclusive, meus amigos e colegas de luta pela descriminalização das drogas -; é bom notar que esta decisão é recorrível e, a não ser que o Ministério Público de SP resolva "deixar para lá", muito provavelmente será reformada nos tribunais superiores, a julgar pelo fato de que historicamente o STJ ou o STF nunca foram muito receptivos ao argumento da inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas para uso pessoal.

O que quero aqui ressaltar, todavia, para além da controvérsia que a argumentação especificamente jurídica da decisão suscita, é que o mesmo órgão do poder judiciário que proíbe a sociedade de sequer falar sobre a legalização das drogas - da maconha, nomeadamente- no espaço público, se arvora no direito de decretar, por decisão judicial (parcialmente) calcada em normas constitucionais implícitas, inválida uma lei aprovada demcraticamente pelo Congresso Nacional brasileiro (pela última vez em 2007), mediante voto majoritário de centenas de congressitas. Isto parece querer dizer: a "choldra" não pode discutir sobre a liberação das drogas, mas os sábios-magistrados (como os reis-filósofos platônicos), não só podem discutir sobre isso, como podem, pelo voto de três membros (não-eleitos) seus, desligitimar a palavra da maioria de centenas de parlamentares, eleitos pelo voto popular direto e universal.

Eu (reafirmo que) quero a leglização das drogas. Mas quero que eu consiga, junto de quem defende a mesma posição, convencer com meus argumentos os que hoje discordam deles a mudar de idéia e, com isso, fomentar a mudança de opinião social sobre este assunto; mudança de opinião social que, por sua vez, deverá refeltir uma alteração na opinião parlamentar majoritária. Aí sim, teremos uma democrática descriminalização das drogas. Na "canetada", eu, pelo menos, não quero...

João Pedro C. V. Pádua
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quarta-feira, 21 de maio de 2008

Corporativismo em dois atos

Corporativismo, numa definição tentativa, é a qualidade de defender sectariamente os interesses privados de uma corporação ou dos membros de uma corporação. O próprio termo corporação é muito antigo e parece se ligar às antigas "corporações de ofício", comuns na Idade Média, quando a vida econômico-social burguesa ainda não estava desenvolvida o suficiente para que as indústrias e a divisão entre proletários e empresários tomasse o lugar do corporativismo. A ressurreição do corporativismo veio do fascismo europeu e de sua pretensão de regular e conciliar, no espaço do estado, os interesses contrapostos do capital e do trabalho. Neste caso, obviamente, era um corporativismo de estado, em que o árbitro supremo era o líder fascista.

No Brasil, em que o estado sempre foi o grande comandante da sociedade, ora repressiva, ora paternalisticamente (como sempre defendi em vários escritos - clique aqui), o corporativismo mediado pelo estado pareceu ainda mais natural - embora menos violento e flagrante - do que na Europa Ocidental, outrora (mais ou menos) liberal. Durante o Governo Vargas, aliás, o corporativismo de estado ficou ainda mais insittucionalizado quando a Constiutição de 1934 recepcionou o instituto jurídico europeu da representação profissional, sob a forma extrema de dar voto aos representantes das categorias econômico-sociais, inseridas no Congresso Nacional sem voto popular.

Em todo caso, hoje, séc. XXI, 20 anos da vigência da mais estável - é preciso reconhecer - ordem constitucional republicana brasileira, causa mais espanto e tristeza ver que a tradição estatista e corporativista brasileira ainda permaneça tão forte - em alguns casos, ainda mais forte do que já foi. A relativa liberação que a sociedade civil pôde ver em relação ao estado nos últimos anos, em muitos casos, ao invés de contribuir para a formação de uma esfera pública e de um espaço público robustos e independentes, converteu-se em novas reinvindicações estratégicas e corporativistas, as quais, no mais das vezes, se voltam para a atuação, ora repressiva, ora paternalista do próprio estado. Foi justamente isso o que duas respeitáveis instituições da justiça fizeram, respectivamente, e, indiretamente, uma contra outra, em atuações recentes.

Ato 1 - A Câmara dos Deputados aprovou, em plenário, o substitutivo da Comissão de Constituição e Justiça ao Projeto de Lei n.º 5762/2005, de autoria, o substitutivo, do deputado Marcelo Ortiz, do PV/SP, que é, também, advogado. Segundo a notícia do informativo Migalhas (clique aqui), a OAB/SP comemorou muito a aprovação do projeto, que agora segue para o Senado, brandindo aqueles tradicionais e meio mofados argumentos: "o advogado exerce múnus público"; "as prerrogativas do advogado beneficiam a parte"; "os advogados são Função Essencial à Justiça, segundo a Constituição de 1988"; etc. Argumentos que todos nós, do mundo jurídico - mesmo os que não são advogados -, conhecemos de cor, não nos cansamos de repetir - mesmo os que não são advogados -, e que, ainda assim, vemos constantemente, ora desmentidos na prática pelos mais diversos funcionários e autoridades do mundo jurídico - basta lembrar que vários, se não todos os, ministros do STF exigem ora marcada para receber advogados, violando literal dispositivo de lei (n.º 8.906/94, art. 7º, VIII) -, ora abusados pelos próprios advogados que não se conformam com o fato de que, embora muitas as suas prerrogativas, não podem tudo.

E agora, aprovando um redundante projeto de lei, os advogados pensam que estão acabando com a arbitrariedade de autoridades jurídicas contra eles; ou, pior, pensam que estão "dando uma lição" aos recalcitrantes. Não percebem que este ato corporativista, em primeiro lugar, será, certamente, mal recebido pelos demais trabalhadores da comunidade jurídica, os quais se sentirão injustamente pressionados e vítimas de generalização odiosa; em segundo lugar, que os membros do MP que acusarão e os juízes que julgarão estes "novos" crimes podem ser, precisamente, aqueles mesmos criados nesta cultura também corporativista de desrespeito à figura do outro, que, no caso do processo, é o advogado, e, como resultado, provavelmente teremos mais uma "lei que "não pega no Brasil"; por fim, em terceiro lugar, não percebem que não há, notadamente, nada de novo nestes "novos" crimes, já tipificados como Violência Arbitrária (art. 322 do CP), Abuso de Poder (art. 350) e Abuso de Autoridade (art. 3º e 4º da Lei n.º 4.898/65), este último majoritariamente tido como revogador implícito dos dois primeiros. Assim a OAB acaba por se colocar como agente da inflação legislativa penal, fenômeno que muitos dos seus membros e conselheiros, na qualidade de advogados ou doutrinadores, tão freqüente quanto corretamente criticam com afinco. Porém, a OAB não está sozinha no corporativismo.

Ato 2: Provando que o corporativismo é universal, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), órgão normalmente muito corporativista, mas às vezes, surpreendente no desprendimento quanto aos presumíveis interesses estratégicos de seu membros, mais uma vez deu mostra de que estes últimos momentos são excepcionais. Ajuizou ontem, dia 20 de maio de 2008, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que recebeu o n.º 4078, impugnando o art. 1º, I da Lei n.º 7.746/86, que disciplina o modo de recrutamento dos ministros do STJ na classe dos magistrados. A AMB quer com esta ADI que, em nome do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade - ou seja: uma maneira de traduzir em juridiquês o fato de que ela quer deste jeito, porque não concorda com que seja do jeito em que atualmente está -, seja dada interpretação conforme a constituição ao dito artigo para declarar que na classe dos magistrados (2/3 da composição do STJ) só se podem nomear para aquele tribunal os "magistrados de carreira", isto é: os que não componham os tribunais já na vaga do quinto constitucional - da advocacia ou do MP.

A própria expressão "magistrado de carreira" é meio corporativista: magistrado que é magistrado está na carreira da magistratura até que dela saia, por aposentadoria ou qualquer outra razão; ou não? Em todo caso, o que a AMB alega é que, se os magistrados "fora da carreira" puderem ser nomeados na qualidade de magistrados, o 1/3 do STJ reservado alternadamente a advogados e membros do MP poderá tornar-se muito mais do que 1/3, se se contar que nos 2/3 dos magistrados poderão entrar tantos outros desembargadores oriundos do quinto constitucional, de modo que, eventualmente, o STJ terá mais "não-magistrados de carreira" do que "sim-magistrados de carreira".

Não interessa entrar no argumento jurídico propriamente dito. Quem quiser ver a inicial da ADI em questão, clique aqui. O que choca, por detrás das quase cinqüenta laudas de contas fracionárias e termos jurídicos de pertinência duvidosa é o fato de que, no fundo, o que AMB parece sugerir é que há dois tipos de magistrados: o magistrado "puro", que começou como juiz de primeira instância e ascendeu à segunda para, daí, em alguns casos, pleiteou vaga na corte superior; e o magistrado "infiltrado", que não seguiu este caminho, mas se valeu de um "enxerto" constitucional para galgar a sua posição no tribunal. Se me permitem continuar na metáfora de genética botânica, o magistrado "puro" pode ver seu galho crescendo normalmente, mas o "magistrado-enxerto" tem de ter seu galho podado, já que, originalmente, não pertence àquela árvore. Como se a Justiça, em vez de uma função de estado, uma ramificação de seu poder, fosse, na verdade, uma profissão como qualquer outra, um ofício como qualquer outro, em que a corporação tem de zelar pelos interesses profissionais da classe.

Em ambos os atos, triste a sina do corporativismo no estado ou virado para o estado, bem à moda brasileira; e justo em algumas das carreiras que deveriam zelar pela Justiça e pelo direito.

João Pedro C. V. Pádua
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terça-feira, 20 de maio de 2008

O bom-humor do STF

Parece piada, mas não é. Quem ler o penúltimo informativo do STF - sim, caros leitores, esta é mais uma postagem predominantemente voltada para "especialistas"; conserto isso na próxima - não pode deixar de ver a notícia intitulada "Publicação em nome de advogado falecido" (clique aqui). A notícia refere-se a processo da Primeira Turma, o Recurso Ordinário em HC n.º 93.849, rel. min. Carmen Lúcia. Lembrem-se de que esta mesma ministra já participou de outro caso muito engraçado no mesmo tribunal quando descobriu - e extinguiu sem julgamento do mérito - que um habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União tinha o paciente pré-morto havia mais de um ano... De qualquer modo, naquele caso, a ministra apenas constatou o que havia passado despercebido por outras instâncias. Neste sentido, ela, digamos, não "deu causa" à graça da história, apenas a esancarou. Neste caso de que agora tratamos, foi diferente. Vejamos.

O fundamento do pedido recursal é, em síntese, que a pauta da sessão de julgamento da apelação dos pacientes fora publicada em nome de advogado falecido dias antes. Como conseqüência, não pôde haver sustentação oral por parte da defesa técnica no processo originário. A tese parece plausível, mas não é isso o que mais importa. O que mais interessa é que a ministra Carmen Lúcia desproveu o recurso ao argumento de que "não caracteriza cerceamento de defesa o julgamento de apelação interposta em favor do réu se o seu patrono vem a falecer antes do julgamento, sem que tenha havido a oportuna comunicação desse fato à turma julgadora". Para elucidar o raciocínio conclusivo, a ministra cuidou de explicitar a premissa maior: o Código de Processo Penal, no seu art. 565, veda à parte que deu causa à nulidade alegá-la, depois, a seu favor. O.k., também este artigo é bastante razoável e impede, por exemplo, que a parte requeira uma rogatória para Ruanda, sem justificativa plausível, e depois requeira a nulidade superveniente da prisão preventiva por excesso de prazo.

No entanto, vejam bem, não é disso que se trata. O que a ministra disse, aparentemente, foi que, ao morrer, o advogado/de cujus deu causa à nulidade da intimação publicada em seu nome, já que não (se) comunicou ao órgão julgador a (sua) morte, a fim de que pudesse proceder à retificação do nome do advogado na intimação por imprensa oficial. Abstraindo a interessante, mas nada engraçada, discussão sobre o que constituiria, em semântica jurídica, "dar causa" ou "causar" - certamente, a morte, um evento natural não parece poder ser imputada como "obra" de nenhum ser (humano) -, a questão que provavelmente se deve fazer sobre esta interpretação da ministra é a que uma advogada próxima de mim me sugeriu: vem cá, o tal advogado/de cujus deu causa à nulidade morrendo ou deixando de comunicar a sua própria morte ao tribunal competente? Neste útlimo caso, provavelmente foi falha do (arc)anjo Gabriel, mensageiro dos céus - se é que ele foi para os ceús, sendo advogado - e, definitivamente, não pode ser atribuída ao advogado...

(Em tempo: depois do voto divergente do min. Marco Aurélio, consignando que se tratava de nulidade absoluta, não validada, pois, pelo seu responsável/causador jurídico, o min. Carlos Britto pediu vista dos autos. O min. Carlos Britto costuma ser esteticamente muito denso e poético em seus votos: vamos esperar o que um caso destes reserva no seu voto-vista).

João Pedro C. V. Pádua
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quinta-feira, 15 de maio de 2008

Indicação

O professor-doutor e desembargador do Tribunal de Justiça aqui do Rio de Janeiro, Geraldo Prado, nos brindou com uma lisonjeira indicação, no blog dele, para este nosso modesto blog. Esta postagem, para além de retribuir a gentileza, serve para tornar pública a nossa admirição e constante aprendizado com as manifestações escritas e orais do professor Geraldo Prado. Ele é, certamente, ao lado de uma geração mais ou menos recente de grandes processualistas penais, um dos poucos no Brasil que ainda "pensa o processo por cima" - como diria o meu grande amigo Ronaldo Cramer -, em vez de ficar gastando rios de tinta para dizer se cabe ou não habeas-corpus contra indeferimento de liminar, ou se o erro na grafia do nome do réu no mandado de citação gera nulidade absoluta, ou se a prisão preventiva é ou não diferente, em natureza jurídica, da prisão decorrente de sentença condenatória recorrível...

Assim como o professor Geraldo Prado, o que procuramos aqui debater é a função e a concepção do processo penal num estado democrático de direito, e o que pode ou não pode oferecer o direito penal para uma sociedade pós-tradicional, como a brasileira, mas que continua ainda refém de vícios históricos capitais.

Mais uma vez obrigado ao professor Geraldo Prado, cujo blog todos os meus (provavelmente não muitos) leitores não devem deixar de conferir: http://www.geraldoprado.com.br/blog/index.asp.

João Pedro C. V. Pádua
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quarta-feira, 14 de maio de 2008

O desembargador denegou a liminar...

Estou, obviamente, falando da útlima "novela da vida real", o caso Isabella Nardoni. Após uma insustentável prisão preventiva, uma pena antecipada evidente e incontestável, a expectativa de que o desembargador Canguçu de Almeida, do TJ/SP, fosse mostrar a mesma coragem e desassombro de que se valeu quando soltou, também por liminar, o casal então preso temporariamente; esta expectativa não se concretizou. A decisão de indeferimento da liminar (veja a íntegra desta decisão) no habeas-corpus impetrado pela defesa de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá prestigia equivocadamente a decisão que determinou a prisão preventiva. E cai na mesma esparrela de confundir ordem pública com agitação popular a favor da condenação; esparrela que, como dito, já foi por diversas vezes proclamada ilegal e inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

Tenho feito umas postagens meio grandes, ultimamente, então vou resistir à tentação de comentar esta decisão em detalhes. Porém, não vou resistir a abordar dois aspectos. O primeiro: quando da decisão anterior, em que defiriu liminar em outro habeas-corpus da defesa, para determinar a soltura de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá da prisão temporária a que estavam sujeitos, o mesmo desembargador Canguçu de Almeida já havia enfatizado muito que o grande motivo de sua decisão era, na época, a circunstância (fática) de que não havia nenhum indício seguro de que o casal tinha, de fato, participado ou concorrido para a morte de Isabella. Sobre esta base, sempre naquela época, o desembargador, então, pôde apelar para a presunção de inocência prevista na constituição e para as normas constitucionais que, ao prever o direito à liberdade (art. 5º, cabeça, da Constituição Federal de 1988) e exceções expressas a este direito (art. 5º, LXI da mesma constituição), estabelceram a liberdade como regra no direito brasileiro - e a prisão, principalmente processual, como clara exceção.

No entanto, e este é o segundo aspecto que ressalto, já nesta nova decisão (clique aqui), a situação fática mudou. Foram amealhados vários novos elementos de prova, pela polícia, apontando para ter sido o casal o autor conjunto do crime, aparentemente. E agora, neste novo quadro fático, o mesmíssimo desembargador acha não mais que a prisão é a exceção das exceções, mas que uma decisão sua que mande soltar os presos liminarmente é que é a exceção das exceções. Por isso ele junta outras decisões de tribunais superiores sobre a excepcionalidade da decisão liminar em habeas-corpus. O novo quadro fático quanto aos elementos de prova de autoria do crime modifica, no entendimento do desembargador, a aplicação das mesmas normas jurídicas antes invocadas para afirmar a excepcionalidade da prisão antes da sentença penal condenatória transitada em julgado - que, neste caso, só sairá se assim julgarem os jurados. E, com isso, o que o desembargador faz é mostrar que, na realidade, o que importa é se o casal parece ou não ter cometido o crime, não se há necessidade processual de que eles fiquem presos durante o julgamento. Ei!, mas as provas de que alguém cometeu o crime não eram requisito para a aplicação da pena de prisão? Eu, hein... que juízes mais esqusitos...

João Pedro C. V. Pádua
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terça-feira, 13 de maio de 2008

Isabella e Dorothy Stang

O que o caso Isabella Nardoni e o caso Dorothy Stang têm em comum? Muitas coisas. Uma: ambas foram mortes brutais e injustificáveis de pessoas boas e puras, ao que tudo indica. Dois: ambos foram casos de grande rumor na mídia, embora o de Isabella Nardoni tenha tido uma cobertura midiática que eu nunca vi ou tive notícia; uma autêntica epopéia que deixaria "Os Lusíadas" no chinelo. Três: ambos geraram uma enorme comoção popular, compreensivelmente, já que a identificação é um fenônemo psíquico-social que desde antes de Freud se concluía da psicologia social; Freud só soube localizá-lo, através de mitos simbólicos - o de "Totem e Tabu" ou de "Moisés e o Monoteísmo", por exemplo -, no plano do inconsciente, antes de tudo.

Mas a principal coincidência que me intriga, como criminalista, é uma quarta: o fato de que, em ambos os casos, o processo penal na sua função primordial, a de controlar a aplicação da lei penal e da coerção penal do estado, seja desmerecido como mero obstáculo para a "realização da justiça". Em primeiro lugar, como diria um grande amigo meu, ganha uma mariola quem me definir, substantiva e universalmente, o que seja "realizar a justiça". A mais famosa fórmula que se aprende na faculdade de direito, atribuída, se não me engano, ao jurista romano Ulpiano, não resolve a questão: honeste vivere, neminem laedere, suum cuique tribuere ("viver honestamente, não lesar a ninguém, dar a cada um o que é seu"). Continuamos, embora agora mais pomposamente, a ter de responder o que é "de cada um", o que é "lesar o outro", ou o que é "honestamente". Justiça só se pode fazer, então, aplicando um direito democraticamente concebido, através de um processo legal democraticamente concebido, numa institucionalidade e ritualidade que faça do direito a "palavra comum da sociedade", como diria o Garapon, que já citei em outro momento. Do contrário, temos parcialidade, emoção, comoção, idéias ou afetos; justiça, não temos.

O Fantástico perguntou à mãe da Isabella o que era justiça. Ela não respondeu diretamente, mas disse que queria ver o pai e a madrasta condenados e que, com isso, via a "justiça começar a ser feita". Se tivesse perguntado aos pais da Anna Carolina Jatobá ou ao pai do Alexandre Nardoni, teria como resposta que justiça seria que os seus respectivos filhos fossem inocentados da acusção de homicídio e, quem sabe, que tivessem uma "justa" indenização do estado por esta acusação "injusta". Os pais dos acusados podem estar em desvantagem numérica em relação à concepção do resto da sociedade, mas nem por isso estão necessariamente errados. O único critério seguro da justiça neste e em tantos outros casos, continua sendo o bom e velho e lento e desacreditado processo penal acusatório, que respeita o direito dos acusados de se defender amplamente, numa relação contraditória em que um órgão - o Ministério Público - é encarregado institucionalmente de acusar, os acusados se defendem pela sua palavra e pela palavra de um defensor tecnicamente habilitado (advogado), e um terceiro, que não está nem de um lado, nem de outro - o juiz - distribui igualmente o direito de usar a palavra no processo, e, afinal, julga qual das duas teses conseguiu convencê-lo melhor; a ele que não estava inicialmente convencido de nehuma das duas teses.

E o que isso tem que ver com o caso Dorothy Stang? Ora, naquele caso, com menos pressão da mídia, o processo penal correu como deveria, a investigação avançou mais ou menos corretamente, o Ministério Público acusou, a defesa fez a sua parte, e, no plenário do Tribunal do Júri, os jurados, num primeiro julgamento, condenaram não só o pistoleiro, senão também o acusado como mandante do crime - tal do "Bida", acho eu - a pena maior do que 20 anos. A defesa, então, usando um recurso que, embora de discutível correção em sua concepção, está em vigor e faz parte do "devido processo legal"; a defesa usou essedireito que tem a um novo julgamento. No novo julgamento, o pistoleiro se retratou do depoimento que prestara no primeiro e, com isso, a acusação se viu sem qualquer prova de que o acusado como mandante do crime seria, de fato, o mandante do crime. E aí, o júri, novamente, cumpriu o seu papel: sem provas do mando do crime, não se pode condenar ninguém, e, por 5 a 2, salvo engano, respondeu "não" ao quesito sobre a autoria do crime para Bida. Foi a senha para diversos órgãos de diversos ramos do estado - e entidades defensoras de direitos humanos - se manifestarem sobre o "absurdo da decisão". Até mesmo dois ministros do STF, que podem vir a julgar (algum aspecto d)este caso, já pronunciaram a sua "insatisfação" com este novo resultado.

Agora, convenhamos, qual é o "absurdo" desta decisão? A decisão, em si, foi perfeita: o júri, reconhecendo a falta de provas, não se deixou levar pela comoção popular e julgou como deve. Sem provas, não há condenação, não importa o quão bárbaro tenha sido o crime. Ninguém pode ser considerado culpado sem sentença penal transitada em julgado, diz o art. 5º, LVII da nossa constituição, já citado neste blog. Mas como assim? O pistoleiro voltou atrás do seu depoimento no primeiro júri!, dirão alguns. Certamente, esta conduta é estranha. Parece sugerir uma intimidação ou um pagamento escuso ou uma outra conduta qualquer, que, por si só, em tese, constitua o crime de Fraude Processual do art. 347 do Código Penal Brasileiro. Mas ou se prova isso e se anula o julgamento sobre essa base, ou não se venha falar de absurdo do julgamento. É absurdo que alguém "compre" ou "ameace" outrem para garantir a impunidade. Aliás, não é só absurdo; é crime previsto no Código Penal, como dito. Agora, também não é pouco arriscado para a acusação apresentar como única prova da autoria mediata de um crime - como se diz do mandante que não executa a ação - o depoimento de um acusado, no mesmo processo (chamado, tecnicamente, co-réu), justamente de ser o executor da conduta criminosa - o autor imediato, portanto.

De qualquer forma, o júri, ou o processo penal, em geral, não existem para tomar uma determinada decisão já previamente desenhada e querida pela mídia ou por outros órgãos do estado. Se for isso, insisto, é melhor não ter processo. O processo com decisão definida antes mesmo de ocorrer é veleidade, é só uma novela daquelas em que todo mundo já sabe o final desde o primeiro capítulo. Não que o processo tenha de ser imprevisível; mas, ao menos, ele tem de poder ter um resultado inesperado, ou não-querido por setores da sociedade ou do governo, ainda que majoritários. Só assim o processo pode fazer justiça, ora quando condena, ora quando absolve. Repito, se não for assim, não se precisa de processo ou de defesa: se defender para que, se o resultado já está definido?

Nós até podemos ter a nossa opinião sobre o crime contra a Isabella ou contra a Dorothy Stang. E podemos achar que a decisão do júri ou da Justiça foi incorreta, ou se baseou em premissas fáticas falsas. E podemos nos manifestar pública ou privadamente sobre isso. Mas, temos de defender com unhas e dentes o processo justo como único meio para cometer erros e acertos na aplicação correta das leis do estado - especialmente as leis que aplicam penas.

Por tudo isso, parafraseando o que bem disse o Adauto Suannes, desembargador aposentado do TJ/SP e um dos melhores cronistas do meio jurídico atual, em sua coluna semanal no informativo "Migalhas" (clique aqui), os que vociferaram contra a decisão do júri da Dorothy Stang, sob uma suposta não-aplicação da justiça naquele caso, perderam, nada obstante seu direito de liberdade de manifestação do pensamento, uma boa chance de manter suas excelsas bocas fechadas.

João Pedro C. V. Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)