segunda-feira, 14 de julho de 2008

Drogas, proibicionismo e o Fantástico

Como a maioria deve estar acompanhando, nos últimos dois domingos o programa Fantástico da Rede Globo de Televisão exibiu uma reportagem sobre um tal rapaz britânico viciado em maconha. Segundo contava a reportagem, o vício fazia este rapaz tornar-se agressivo e anti-social, inclusive com relação aos pais. Além disso, sua vida era, por assim dizer, inútil, perdida entre a maconha, outras drogas - o álcool inclusive -, o computador e as brigas com a família e outras pessoas. O vídeo que retrata a suposta história deste garoto foi o mote para uma discussão com especialistas (assim chamados, ao menos) e leigos acerca da melhor alternativa para este garoto e sua família, com alternativas que variavam entre internação e entrega do rapaz à polícia - pela maconha, claro, não pelo álcool, cujo uso não é ilícito...

Para um programa televisivo que já exibiu tantas reportagens interessantes - inclusive uma com reais especialistas em psicologia e psicanálise sobre as possíveis explicações para o comportamento do pai da menina Isabella Nardoni em tê-la, supostamente, matado, matéria que fugia do lugar comum que o demonizava e declarava o mundo "perdido" (clique aqui) - para um programa tão pródigo em boas entrevistas, com especialistas sérios, esta reportagem, sem dúvida, foi uma bola fora. Para começar pela caricatura. A Maconha, uma das drogas que menos gera dependência, e um "risco muito menos sério para a saúde pública do que o álcool e o cigarro [que são drogas lícitas na maioria do mundo ocidental]", nas palavras de um estudo conduzido em nome da Organização Mundial da Saúde em 1995 (clique aqui), recebe nas imagens do vídeo uma carga simbólica de sentimentos negativos que só possui por causa desta sua própria simbolização social. Ou seja, quanto mais se associam imagens como a do menino descontrolado do Fantástico à maconha, mais se chega à conclusão de que se trata de um risco incontrolável para a saúde pública e para a sociedade. Não é à toa que durante muito tempo as marcas de cigarro associavam simbolicamente o seu produto à liberdade de cavalos selvagens, jipes no deserto e botes em rafting. Também não é à toa que as marcas de cerveja ou de outras bebidas alcoólicas associam o seu produto a mulhers esculturais, a festas animadas ou a relaxamento em relação às agruras do dia-a-dia.

Esta associação simbólica (re)cria a valoração social que recai sobre qualquer coisa - atividade, produto, processo - que tem na sociedade e na cultura desta sociedade o seu contexto significativo, o seu pano de fundo semântico. A maconha é ilícita porque é, no final das contas. Fazer mal, o álcool e o cigarro também fazem - e muito mais do que a maconha, segundo reconhece o nosso Ministério da Saúde (clique aqui). Mas a maconha é "diabólica", a maconha "destrói a nossa juventude", a maconha cria monstros como o tal inglês do vídeo. Será mesmo?

O psicólogo Luiz Paulo Guanabara, presidente da Psicotropicus, uma associação que se dedica à reforma da política de drogas no Brasil - e da qual este escriba é diretor jurídico - escreveu uma carta à produção do programa em questão alertando sobre o sensacionalismo inserto e explícito na referida matéria. A carta dele não só coloca em dúvida a autenticidade do vídeo do rapaz inglês, mas também coloca a questão no seu devido lugar e denuncia as falácias implicadas na tomada de posição do Fantástico. Segue a íntegra da carta:

" VÍDEO SOBRE MACONHA EXIBIDO NO FANTÁSTICO
PARA AMPLA DIVULGAÇÃO
Aos Produtores do Fantástico, Rede Globo de Televisão
Domingo, 06 de julho de 2008
O programa Fantástico há anos tem exibido excelentes matérias e informações de utilidade pública. Mas a peça de desinformação e de demonização da maconha aparentemente feita na Inglaterra e exibida neste domingo é propaganda barata, ridícula e mal feita. O apresentador começa dizendo que a pessoa pode ficar até dois anos presa por consumir maconha naquele país. Aqui no Brasil, de acordo com a lei de drogas em vigor, o “maconheiro” não é preso. Será que na Inglaterra a sanha punitiva chega a ponto de encarcerar por dois anos quem fuma maconha? Claro que não.
Em seguida foi exibido aquele vídeo lamentável, uma peça de propaganda que contribui para o sensacionalismo jornalístico que vende essa desinformação para uma população que não tem a menor noção dos verdadeiros perigos do uso de drogas.
O simples fato de falar de drogas como se todas fossem iguais, como se a maconha acarretasse os mesmos riscos que a cocaína, por exemplo, é outra mentira corrente na mídia, que ao longo dos anos fortaleceu essa noção equivocada no imaginário da população: a da existência de um inimigo abstrato chamado DROGA.
O vídeo é uma armação barata. Será que alguém é idiota a ponto de produzir provas contra si mesmo se deixando gravar num vídeo e correr o risco de ser preso por dois anos, segundo a matéria? O garoto foi preso? Não deveria ter sido preso imediatamente depois que o vídeo foi divulgado? E os amigos que aparecem no parque consumindo com ele, se deixaram ser filmados assim numa boa? Queriam se exibir para seus pais e professores? Queriam que todos vissem que estavam cometendo um crime?
Todo mundo sabe que a garotada que fuma maconha busca esconder isso dos pais, dos professores e de todo mundo. Quem fuma maconha em geral só revela isso para outro fumante. Nem para seu médico ele informa, com medo de ser discriminado, com medo do preconceito, um dos males de essa planta ser proibida.
É desanimador que peças de propaganda contra a maconha iguais às do começo do século passado continuem a ser produzidas e exibidas em pleno século XXI. Só faltou o adolescente matar os pais e ir ao cinema, ou dizer que maconha desenvolve peitos em homens, como faziam as peças publicitárias antimaconha daquela época. O vídeo é mal feito, a continuidade é desastrosa. O garoto de repente compra uma moto trabalhando como jardineiro. Se ele vivia “chapado” e não fazia nada, como conseguiu comprar uma moto? Ele não gastava todo seu dinheiro em maconha, como afirma o vídeo?
Qualquer pessoa que conheça um pouco os efeitos das drogas sabe que para ficar descontrolado daquele jeito só tendo algum problema mental ou usando outras drogas mais fortes, como o álcool. A mãe do menino diz para ele numa cena que ele sempre volta pra casa bêbado e sob efeito de maconha. Mas se ele bebia, não importa, o que interessa é demonizar a “droga”.
E seu comportamento agressivo, desenvolvido em apenas seis meses, pois antes era um atleta e estudante exemplar? “A maconha me relaxa”, relata o menino ao psicólogo que os pais chamaram para intervir. É uma mentira deslavada dizer que a maconha é responsável por comportamentos agressivos e por uma transformação dessa.
E as cenas de consumo explícito de maconha? Os closes do garoto fumando? Que pais exporiam seus filhos assim, e que adolescente se sujeitaria a ser gravado daquele jeito? Com pais como esses, não é à toa que o adolescente estivesse descompensado.
A votação em que os telespectadores escolheram “internação” foi surreal. O debate que se seguiu ao vídeo também. Será que os profissionais que opinaram não perceberam o engodo? A coisa toda seria um grave acinte à inteligência do telespectador, se este tivesse informação honesta sobre as drogas. E com certeza a grande maioria das pessoas bem informadas não percebeu a calculada propaganda antimaconha do vídeo exibido. O folclore da “erva diabólica” já está bem arraigado em suas cabeças.
Produtores do Fantástico, por favor, não exibam a continuação dessa porcaria prevista para o próximo programa.
Luiz Paulo Guanabara
PEDIMOS que divulguem essa carta. Para fazer sua crítica direta: http://fantastico.globo.com/ NÃO podemos deixar que peças publicitárias nefastas e mentirosas como essa continuem a ser exibidas sem críticas e indignação. Quem viu o vídeo GRASS (Super Interessante, editora Abril) vendido nas bancas de jornal, pode reconhecer na matéria do Fantástico o mesmo tipo de mentira das propagandas antimaconha estadudinenses ali exibidas.
Luiz Paulo Guanabara Psicotropicus - Centro de Políticas de Drogas Av. Presidente Vargas 590 - sala 515 20.071-000, Rio de Janeiro, Brasil Tel: (55-21) 3553-0722 www.psicotropicus.org "

João Pedro C. V. Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)

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