Em uma das mais interessante cenas do filme "O que é isso, companhaneiro" (1987), de Bruno Barreto, adaptado do romance homônimo de Fernando Gabeira, um ator coadjuvante, que faz o papel de amigo do personagem do Fernando, após criticado por ser muito apático e não se engajar na luta armada contra a ditadura, responde algo como: "vocês e a ditadura são como as duas pontas de uma ferradura: parecem muito distantes, mas na verdade estão muito próximos". O que, naturalmente, o nosso personagem queria dizer ao do Fernando é que de nada adiantava lutar contra a ditadura usando os métodos da própria ditadura, ou seja: seqüestro, tortura, terrorismo, coerção; violência, em geral, enfim.
Pois bem, no mundo jurídico - jurídico-penal, especialmente - é muito comum uma dualidade entre os assim-chamados "garantistas" (às vezes também chamados "liberais" ou "minimalistas") e os assim-chamados "punitivistas" (embora este nome seja menos estabelecido e mais intercambiável com "duros", "maximalistas", "sancionatórios" e outros mais ou menos completos sinônimos). A idéia é a seguinte: os "garantistas" - cujo nome deriva de uma obra clássica de filosofia penal, tão citada quanto pouco lida, chamada "Direito e Razão" e escrita pelo ex-juiz italiano Luigi Ferrajoli - os "garantistas" acreditariam que o direito penal teria de ser mínimo, ou seja, aplicar-se a pouquíssimos casos, somente onde o seu amargo remédio, a pena de prisão, fosse estritamente necessário em relação à violação das situações de normalidade social consideradas mais vitais pela ordem jurídica - os chamados bens jurídicos (ou jurídico-penais).
Os "punitivistas", por sua vez, parecem concordar com o direito penal seja um direito amargo, mas toleram uma maior expansão de sua aplicação. E fazem isso, em virtude de acreditarem que várias condutas violam os tais bens jurídicos fundamentais da sociedade, e que, por isso, merecem punição mais severa, a qual punição, pode o direito penal fornecer.
Como conseqüência, os "garantistas" procuram estruturar um processo penal muito formalizado, que contenha procedimentos rígidos para todos os seus atos. Com isso, procuram ainda mais reduzir o âmbito de atuação do direito penal e garantir - daí o nome - que os acusados de crimes sejam protegidos ao máximo em sua individualidade e situação jurídica; além de somente serem condenados quando não puder mais pairar, no bojo do processo, dúvida empiricamente ou juridicamente relevante sobre o cometimento do crime.
Volarei aos "punitivistas" num instante. A idéia dos garantistas, no entanto, parece lógica, certo? - ao menos no plano processual. Temos de cercar de garantias rígidas todos os acusados de crime; afinal eles estão sob um pesado jugo coercitivo do estado, e precisamos prevenir esta delicada atividade estatal contra injustiças, perseguições, falhas, despreparo, e falta de dedicação humanos, etc. De novo, os "punivistas" sérios também concordam com isso e só disso descordaria(m) os saudosos da(s) ditadura(s) - à esquerda ou à direita. O "garantismo", neste ponto, de novo como sugere o nome, visa apenas a garantir o sujeito de direitos - qualquer cidadão ou habitante do Brasil - contra abusos e malversações de poder - especialmente do poder de punir.
Mas o que acontece quando o garantismo se torna abuso? O juiz federal André Lenart (aqui do Rio de Janeiro) tem um blog chamado "Reserva de Justiça" em que, de vez em quando, coloca histórias dantescas - como a do processo de acusação por homicídio do jornalista Pimenta Neves - de recursos que se multiplicam na mesma instância, debatendo questões que ou já foram apropriadamente resolvidas, ou que, simplesmente, não importam nem para preservar o réu, nem para lhe garantir ampla defesa. Com razão ele critica estes episódios e com razão ele lhos chama pelo pejorativo apelido forense: "chicanas" - se bem que muitas vezes as críticas dele levam a conclusões mais fortes, nas quais ele, com todo o respeito, não tem nenhuma razão.
Garantismo não é chicana e a defesa tem o dever - inclusive legal - de se dar por vencida, quando tiver esgotado seus meios lícitos de impugnação. Injustiças pontuais são inevitáveis, embora muitíssimo lamentáveis e, se houver como prová-las, em algum momento, nem a decisão judicial definitiva - ou não tão definitiva assim - é obstáculo: para o condenado - mas não para a acusação, quanto ao absolvido -, existe a revisão criminal, que serve, justamente, a desfazer uma decisão que se achava definitiva (ou, em linguagem técnica, para desconstituir a coisa julgada) - isso, obviamente, não quer dizer que devamos nos contentar com injustiças, mas somente que, humanos, não podemos aspirar à perfeição: podemos, quando muito, procurar garantir que algumas instituições minorem a quantidade e os efeitos das falhas humanas.
Em todo caso, é preciso que a definitividade da decisão condenatória se deixe produzir, por mais que tal definitividade possa se provar, mais adiante, nem tão definitiva assim. E aqui, a primeira ferradura processual penal: "punitivistas" exacerbados, que acham que qualquer garantia processual é chicana e que pensam - como ouvimos mais do que deveríamos ouvir no foro - que "aos inocentes, a pena mínima" parecem muito distantes, mas na verdade estão muito próximos dos "garantistas" exacerbados, que pensam que qualquer condenação é injusta e autoritária, ou que faz parte da ampla defesa interpor recursos claramente incabíveis ou destituídos de fundamento, apenas para atrasar a definição do processo.
Existe, ainda, uma outra - e talvez mais perversa - ferradura processual. E esta, sinto muito, se deve muito mais aos "punivistas". Muitos dos argumentos anti-garantias processuais mais estendidas e profundas de que estes últimos se valem partem do fato de que, como todos sabemos, embora escritas em normas jurídicas claras, as garantias não valem, totalmente, para criminosos que não têm recursos para arcar com advogados mais bem preparados. Isto porque, digamos, um favelado acusado por roubo, preso em flagrante, tem grandes chances de apanhar e ser torturado pela polícia - afinal, é um "vagabundo" -, de não ter nem considerado seu direito, eventualmente, de responder ao processo em liberdade, de não ter entrevista reservada com o defensor público senão minutos antes de sua primeira participação no processo - quando não há tempo de preparar nenhuma defesa que preste -; enfim, este sujeito, criminoso ou não tem grande chances de não ter quase nenhuma garantia respeitada, inclusive porque muitos juízes, que deveriam zelar por isso, também acham que se trata de um "vagabundo": "quem mandou roubar?"
Pois bem, alguns "punitivistas", especialmente no âmbito do sistema penal federal, que lida com crimes de pessoas de mais recursos e classe social mais privilegiada (crimes do colarinho branco, como definiu um criminólogo americano no meio do século passado); alguns "punitivistas" acham que, como não há garantias para os mais pobres, também não deveria haver para os mais ricos. Usam, ainda, para isso, o contraste flagrante entre abuso de garantias pelos mais ricos e total falta delas para os mais pobres.
Aqui, de novo, embora pareçam ser situações muito distantes, estão elas muito próximas. Garantias são garantias. Elas tem de valer, sem abuso, para ricos, pobres, remediados, brancos, negros, homossexuais, heterossexuais, sulistas, nordestinos, juízes, advogados, empresários, trombadinhas, enfim: para qualquer pessoa acusada de crime. É justamente porque o processo penal se estrutura para a reconstrução fática do evento supostamente criminoso, e para a sua caracterização como, de fato e de direito, criminoso, é justamente por isso que não importa quem pode ou não pode pagar advogado, quem tem ou não tem dinheiro. O que importa - e é papel do juiz zelar por isso - é que as garantias processuais do acusado sejam efetivamente levadas em conta, não importa o quão inúteis pareçam ao juiz ou à acusação. É a única parte da estrutura processual que é despersonalizada, ou seja: que não depende de avaliação subjetiva de um pessoa investida de autoridade.
Quem aponta para o fato de que as garantias não valem para os pobres, como crítica ao fato de valerem - às vezes demasiado - para os ricos, na verdade, parece não querer que elas valham para ninguém; parece querer que os ricos fiquem iguais aos pobres, submetidos à autoridade desmesurada do estado, e não o contrário. Pois é o contrário que quebra a distância aparente desta ferradura e igualiza as situações: garantias para pobres e ricos. Direito penal pode ser instrumento de controle social, mas certamente não é instrumento de justiça social - nem num sentido, nem em outro da pirâmide social.
João Pedro Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
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