terça-feira, 13 de maio de 2008

Isabella e Dorothy Stang

O que o caso Isabella Nardoni e o caso Dorothy Stang têm em comum? Muitas coisas. Uma: ambas foram mortes brutais e injustificáveis de pessoas boas e puras, ao que tudo indica. Dois: ambos foram casos de grande rumor na mídia, embora o de Isabella Nardoni tenha tido uma cobertura midiática que eu nunca vi ou tive notícia; uma autêntica epopéia que deixaria "Os Lusíadas" no chinelo. Três: ambos geraram uma enorme comoção popular, compreensivelmente, já que a identificação é um fenônemo psíquico-social que desde antes de Freud se concluía da psicologia social; Freud só soube localizá-lo, através de mitos simbólicos - o de "Totem e Tabu" ou de "Moisés e o Monoteísmo", por exemplo -, no plano do inconsciente, antes de tudo.

Mas a principal coincidência que me intriga, como criminalista, é uma quarta: o fato de que, em ambos os casos, o processo penal na sua função primordial, a de controlar a aplicação da lei penal e da coerção penal do estado, seja desmerecido como mero obstáculo para a "realização da justiça". Em primeiro lugar, como diria um grande amigo meu, ganha uma mariola quem me definir, substantiva e universalmente, o que seja "realizar a justiça". A mais famosa fórmula que se aprende na faculdade de direito, atribuída, se não me engano, ao jurista romano Ulpiano, não resolve a questão: honeste vivere, neminem laedere, suum cuique tribuere ("viver honestamente, não lesar a ninguém, dar a cada um o que é seu"). Continuamos, embora agora mais pomposamente, a ter de responder o que é "de cada um", o que é "lesar o outro", ou o que é "honestamente". Justiça só se pode fazer, então, aplicando um direito democraticamente concebido, através de um processo legal democraticamente concebido, numa institucionalidade e ritualidade que faça do direito a "palavra comum da sociedade", como diria o Garapon, que já citei em outro momento. Do contrário, temos parcialidade, emoção, comoção, idéias ou afetos; justiça, não temos.

O Fantástico perguntou à mãe da Isabella o que era justiça. Ela não respondeu diretamente, mas disse que queria ver o pai e a madrasta condenados e que, com isso, via a "justiça começar a ser feita". Se tivesse perguntado aos pais da Anna Carolina Jatobá ou ao pai do Alexandre Nardoni, teria como resposta que justiça seria que os seus respectivos filhos fossem inocentados da acusção de homicídio e, quem sabe, que tivessem uma "justa" indenização do estado por esta acusação "injusta". Os pais dos acusados podem estar em desvantagem numérica em relação à concepção do resto da sociedade, mas nem por isso estão necessariamente errados. O único critério seguro da justiça neste e em tantos outros casos, continua sendo o bom e velho e lento e desacreditado processo penal acusatório, que respeita o direito dos acusados de se defender amplamente, numa relação contraditória em que um órgão - o Ministério Público - é encarregado institucionalmente de acusar, os acusados se defendem pela sua palavra e pela palavra de um defensor tecnicamente habilitado (advogado), e um terceiro, que não está nem de um lado, nem de outro - o juiz - distribui igualmente o direito de usar a palavra no processo, e, afinal, julga qual das duas teses conseguiu convencê-lo melhor; a ele que não estava inicialmente convencido de nehuma das duas teses.

E o que isso tem que ver com o caso Dorothy Stang? Ora, naquele caso, com menos pressão da mídia, o processo penal correu como deveria, a investigação avançou mais ou menos corretamente, o Ministério Público acusou, a defesa fez a sua parte, e, no plenário do Tribunal do Júri, os jurados, num primeiro julgamento, condenaram não só o pistoleiro, senão também o acusado como mandante do crime - tal do "Bida", acho eu - a pena maior do que 20 anos. A defesa, então, usando um recurso que, embora de discutível correção em sua concepção, está em vigor e faz parte do "devido processo legal"; a defesa usou essedireito que tem a um novo julgamento. No novo julgamento, o pistoleiro se retratou do depoimento que prestara no primeiro e, com isso, a acusação se viu sem qualquer prova de que o acusado como mandante do crime seria, de fato, o mandante do crime. E aí, o júri, novamente, cumpriu o seu papel: sem provas do mando do crime, não se pode condenar ninguém, e, por 5 a 2, salvo engano, respondeu "não" ao quesito sobre a autoria do crime para Bida. Foi a senha para diversos órgãos de diversos ramos do estado - e entidades defensoras de direitos humanos - se manifestarem sobre o "absurdo da decisão". Até mesmo dois ministros do STF, que podem vir a julgar (algum aspecto d)este caso, já pronunciaram a sua "insatisfação" com este novo resultado.

Agora, convenhamos, qual é o "absurdo" desta decisão? A decisão, em si, foi perfeita: o júri, reconhecendo a falta de provas, não se deixou levar pela comoção popular e julgou como deve. Sem provas, não há condenação, não importa o quão bárbaro tenha sido o crime. Ninguém pode ser considerado culpado sem sentença penal transitada em julgado, diz o art. 5º, LVII da nossa constituição, já citado neste blog. Mas como assim? O pistoleiro voltou atrás do seu depoimento no primeiro júri!, dirão alguns. Certamente, esta conduta é estranha. Parece sugerir uma intimidação ou um pagamento escuso ou uma outra conduta qualquer, que, por si só, em tese, constitua o crime de Fraude Processual do art. 347 do Código Penal Brasileiro. Mas ou se prova isso e se anula o julgamento sobre essa base, ou não se venha falar de absurdo do julgamento. É absurdo que alguém "compre" ou "ameace" outrem para garantir a impunidade. Aliás, não é só absurdo; é crime previsto no Código Penal, como dito. Agora, também não é pouco arriscado para a acusação apresentar como única prova da autoria mediata de um crime - como se diz do mandante que não executa a ação - o depoimento de um acusado, no mesmo processo (chamado, tecnicamente, co-réu), justamente de ser o executor da conduta criminosa - o autor imediato, portanto.

De qualquer forma, o júri, ou o processo penal, em geral, não existem para tomar uma determinada decisão já previamente desenhada e querida pela mídia ou por outros órgãos do estado. Se for isso, insisto, é melhor não ter processo. O processo com decisão definida antes mesmo de ocorrer é veleidade, é só uma novela daquelas em que todo mundo já sabe o final desde o primeiro capítulo. Não que o processo tenha de ser imprevisível; mas, ao menos, ele tem de poder ter um resultado inesperado, ou não-querido por setores da sociedade ou do governo, ainda que majoritários. Só assim o processo pode fazer justiça, ora quando condena, ora quando absolve. Repito, se não for assim, não se precisa de processo ou de defesa: se defender para que, se o resultado já está definido?

Nós até podemos ter a nossa opinião sobre o crime contra a Isabella ou contra a Dorothy Stang. E podemos achar que a decisão do júri ou da Justiça foi incorreta, ou se baseou em premissas fáticas falsas. E podemos nos manifestar pública ou privadamente sobre isso. Mas, temos de defender com unhas e dentes o processo justo como único meio para cometer erros e acertos na aplicação correta das leis do estado - especialmente as leis que aplicam penas.

Por tudo isso, parafraseando o que bem disse o Adauto Suannes, desembargador aposentado do TJ/SP e um dos melhores cronistas do meio jurídico atual, em sua coluna semanal no informativo "Migalhas" (clique aqui), os que vociferaram contra a decisão do júri da Dorothy Stang, sob uma suposta não-aplicação da justiça naquele caso, perderam, nada obstante seu direito de liberdade de manifestação do pensamento, uma boa chance de manter suas excelsas bocas fechadas.

João Pedro C. V. Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)

Um comentário:

Fernandinha disse...

Qual o nome do promotor no caso da irmã Dorothy? E dos investigadores? Você sabe?? Essa é a diferença...