domingo, 25 de maio de 2008

Dois atos no enfraquecimento democrático pelo poder judiciário

Parece que estamos dançando. Na última postagem, falei sobre dois atos de corporativismo, um na advocacia e um na magistratura. Agora temos novos dois atos, embora, desta vez, venham de uma mesma fonte: o poder judiciário. Desde o ínicio da faculdade de direito aprendemos uma historinha interessante que beira a ficção, tomada do ponto-de-vista da teoria social. Aprendemos que "o poder judiciário é uno". Interessante esta lição, se usamos como ponto de comparação os outros dois poderes do esquema clássico, sistematizado, mas não propriamente criado ou proposto, pelo clássico Barão de Montesquieu. Ninguém diria que o poder executivo ou que o poder legislativo é uno - a discussão é se o Município é um ente da federação, e, portanto, diretamente ligado, em sua autonomia, à União Federal. No entanto, os juristas parecemos aceitar com incofessada facilidade o fato de que o poder judiciário, nada obstante dividido entre um grande ramo federal (ou da União, para ser mais técnico) - que ainda se subdivide em comum, eleitoral, trabalhista e militar - e um grande ramo estadual, presente em todos os estados da federação - e ainda no Distrito Federal, que tecnicamente, faz parte da Justiça da União, mas julga causas estaduais -; nada obstante estas múltiplas divisões, parecemos todos aceitar que "a jurisdição é una"... Vá lá, então, usemos esta ficção contra o objeto da ficção.


Um grande amigo meu, José Schettino, me mandou um e-mail recentemente, em que, mais ou menos, disse "pobre da sociedade brasileira: num mês o poder judiciário de quase todas as capitais dos principais estados da federação impede um movimento concertado para protestar democraticamente contra a proibição da maconha; no mês senguinte o mesmo [uno] poder judiciário resolve declarar incostitucional uma lei que, democraticamente promulgada, reafirma a criminalização do porte de drogas para uso pessoal." Ele tem toda a razão. Vejam os caros leitores que eu, ao contrário do meu grande amigo e sócio, Breno Melaragno Costa, que escreveu sobre isso, neste blog, algum tempo atrás, sou francamente favorável à legalização da maioria das drogas hoje ilícitas, especialmente a maconha. No entanto, a legalização não se pode fazer pelo judiciário, órgão incumbido de aplicar as leis e a constituição; antes, tem de ser feita, com a voz, a palavra, e a participação popular, através dos seus representantes no poder legislativo, que foi quem, primeiro, tornou ilícitas algumas - mas não todas as - drogas, lá no início do séc. XX.


Todas essas elucubrações vêm porque, como a maioria deve saber, o Tribunal de Justiça de São Paulo, que - para não jogarem o meu argumento da ficção da unidade da jurisdição contra mim - havia, junto de outros, por um juiz seu, proibido a marcha da maconha naquele estado menos de mês antes, resolveu agora, por decisão da sua 6ª Câmara Criminal, declarar incostitucional o art. 28 da Lei n.º 11.343/2007, que criminalizava o porte de drogas para uso pessoal. Os argumentos jurídicos, para quem milita na área penal, são os mesmos já conhecidos há algumas décadas, ao menos desde que aparecida a já vintenária Constituição de 1988: princípio da ofensividade ou da lesividade, direito à privacidade, e direito à igualdade - poderiam ser citados também, por exemplo, o princípio da proporcionalidade, o princípio da culpabilidade, direito à liberdade e autonomia privada etc. A análise jurídica destes fundamentos não interessa muito, exceto para notar vários deles são considerados implícitos na ordem constitucional brasileira. Ou seja, é isso mesmo: para você que não é jurista, saiba que os tribunais brasileiros - como vários outros no Mundo Ocidental, é verdade - julgam leis promulgadas pelo Congresso Nacional em votação bicameral inconstitucionais com base em normas que não estão expressas textualmente na nossa constituição, mas que, no seu juízo - freqüentemente não-coincidente com o de outros juristas -, "decorrem do sistema constitucional como um todo".

Aliás, é bom notar, para os que ingenuamente vêm aplaudindo esta decisão como se fora a notícia do ano - alguns, inclusive, meus amigos e colegas de luta pela descriminalização das drogas -; é bom notar que esta decisão é recorrível e, a não ser que o Ministério Público de SP resolva "deixar para lá", muito provavelmente será reformada nos tribunais superiores, a julgar pelo fato de que historicamente o STJ ou o STF nunca foram muito receptivos ao argumento da inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas para uso pessoal.

O que quero aqui ressaltar, todavia, para além da controvérsia que a argumentação especificamente jurídica da decisão suscita, é que o mesmo órgão do poder judiciário que proíbe a sociedade de sequer falar sobre a legalização das drogas - da maconha, nomeadamente- no espaço público, se arvora no direito de decretar, por decisão judicial (parcialmente) calcada em normas constitucionais implícitas, inválida uma lei aprovada demcraticamente pelo Congresso Nacional brasileiro (pela última vez em 2007), mediante voto majoritário de centenas de congressitas. Isto parece querer dizer: a "choldra" não pode discutir sobre a liberação das drogas, mas os sábios-magistrados (como os reis-filósofos platônicos), não só podem discutir sobre isso, como podem, pelo voto de três membros (não-eleitos) seus, desligitimar a palavra da maioria de centenas de parlamentares, eleitos pelo voto popular direto e universal.

Eu (reafirmo que) quero a leglização das drogas. Mas quero que eu consiga, junto de quem defende a mesma posição, convencer com meus argumentos os que hoje discordam deles a mudar de idéia e, com isso, fomentar a mudança de opinião social sobre este assunto; mudança de opinião social que, por sua vez, deverá refeltir uma alteração na opinião parlamentar majoritária. Aí sim, teremos uma democrática descriminalização das drogas. Na "canetada", eu, pelo menos, não quero...

João Pedro C. V. Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)

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