segunda-feira, 28 de julho de 2008

O juiz e a justiça

"Aquele magistrado que, antes de lhe chegar às mãos os autos de um processo criminal, com todas as suas peculiaridades e minúcias do caso concreto, tenciona reprimir o crime a, assim, banir uma particular injustiça, quer por força de um compromisso moral, quer psicológico ou mesmo religioso, pode ser tudo, mas não será uma juiz."(grifo do autor)

Eu até gostaria que fosse eu o autor da citação acima. Mas, infelizmente, não sou. O que talvez choque os meus leitores - especialmente os criminalistas - é o real autor do parágrafo transcrito: trata-se do procurador da república Rodrigo de Grandis, de São Paulo, que atua pelo Ministério Público Federal na acusação do caso (inquérito, por enquanto) que envolve, entre outros, o banqueiro Daniel Dantas.

Não, eu não vou escrever sobre a querela entre o juiz Fausto Martin de Sanctis e o ministro Gilmar Mendes, tão acrimoniosa que já deu até representação por crime de responsabilidade (ou, popularmente, "pedido de impeachment"), contra este último, no Senado, arquivada embora, a esta altura. Mas, me desculpe o juiz Fausto de Sanctis - ou, em juridiquês, data maxima venia -, eu vou falar sobre a atitude dele na conduação deste processo. Entendam-me bem, não faço isso para criticar especificamente o juiz Fausto de Sanctis, mas, já que ele ficou famoso, vou me permitir usá-lo de protótipo para uma atitude cada vez mais comum entre juízes - federais ou não, de primeira instância ou não - e, diga-se logo, cada vez mais incompatível com a posição de um juiz, ao menos no processo penal.

Como bem disse o procurador de Grandis no mesmo artigo do qual saiu a citação acima (Revista Brasileira de Ciências Criminasi, número 71), o juiz não deve ter compromisso com a luta contra o crime. Como assim? - perguntará o estupefato leitor. O juiz não é um membro do poder público? Não é justamente ele,quem aplica a pena? E não é missão do poder público reprimir o crime? Como, então, não tem ele compromisso com a luta contra o crime?

Não vou negar o valor da linha socrática de indagações acima. O próprio juiz de Sanctis parece usá-la implicitamente quando justificou sua conduta na operação - que nome infeliz! - "Satiagraha" - parece sânscrito... - da polícia federal, na qual preso, entre outros, o banqueiro Daniel Dantas. Disse ele:

" Viver em paz e livre requer muitas vezes dos que se esquecem dos preceitos sociais legítimos a resposta estatal. Não se pode rivalizar com as pessoas de bem.
As custódias cautelares (legalmente previstas) decorrem, apesar da excepcionalidade, do destemor e desrespeito às instituições regularmente constituídas no país, para que as atividades de persecução estatal tenham seu curso natural." (para o texto na íntegra, clique aqui)

Vejam todos que o "curso natural" da persecução estatal, na leitura do juiz Fausto de Sanctis - e de muitos de seus colegas, talvez a lamentável maioria - é a prisão do perseguido. O curso não-natural, por exclusão, é a absolvição, portanto. Isso sem embargo de a nossa constituição dizer que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória" (art. 5º, LVII).

Esta norma existe, caro leitor, não para "proteger bandido", mas porque sabiamente e ao contrário do nosso personagem judiciário, a nossa atual constituição soube reconhecer que não existe um fim "natural" da perseguição (ou persecução) penal. Tanto ela pode desembocar na condenação, quanto na absolvição. Ao processo penal, para ser devido processo (due process), deve estar assegurada a possibilidade da surpresa; ou seja: o processo não pode começar nem pendendo para um lado, nem para o outro, senão deve pender, para qualquer dos lados, somente após o seu encerramento como evento jurídico de produção de correção normativa e de verdade -verdade processual, bem entendido, já que a "verdade real", de que tanto falam os manuais de processo penal, só quem vai saber, se tanto, são o acusado, sua vítima direta (se houver) e, para quem acredita, Deus.

E quem garante este não-pender para nenhum dos lados? Acertou quem respondeu "o juiz". O juiz é um órgão do estado, conforme, de novo, diz a Constituição de 1988 (art. 92). Ele, portanto, como membro do poder judiciário, exerce função de estado. Em que consiste esta função - no processo penal, para facilitar a nossa vida? Consiste em assegurar o exercício de humilidade de poder que o próprio estado impôs a si próprio. Veja: o estado detém o monopólio do exercício da violência como coerção legal e normativamente correta. A princípio, o próprio estado pode aplicá-la a quem quer que tenha praticado um ilícito. Em muitos momentos, o estado o faz, por assim dizer, diretamente, como, por exemplo, ao aplicar uma multa administrativa sobre um açougue que descumpre as normas sanitárias a que está sujeito.

No caso da sanção penal, por ilícito penal (crime ou delito), no entanto, não há a possibilidade desta aplicação direta. Como a pena criminal é especialmente grave, em regra - a privação da liberdade -, o estado, em exercício de humildade, comete a um órgão seu, distinto do que aplica a lei diretamente, o que dogmaticamente chamamos "prévio acerto de legalidade do ato". O juiz, apesar de, performativamente, aplicar a pena criminal e fazê-la eficaz concretamente, o faz não por ser o órgão que deve "proteger" a sociedade do crime, mas, ao contrário, por ser o órgão que deve limitar a atuação do estado e garantir que, no caso concreto "com todas as suas peculiaridades" - disse sabiamente o procurador de Grandis -, a pena é devida, normativamente correta, segundo uma verdade processual obtida no confronto argumentativo entre a palavra da acusação e a palavra da defesa, em igualdade de condições, dadas as suas naturais deferenças.

O juiz, portanto, não coopera com a segurança pública, senão limita a atuação do estado também neste campo, e assegura a sua correção, no ponto final da cadeia de perseguição penal: o processo de declaração da responsabilidade penal ou da sua ausência, com a conseqüente aplicação ou não-aplicação da pena. Na feliz e simples expressão do desembargador Amílton Bueno de Carvalho, do RS, o processo penal equilibrado se dá assim: um acusa (o Ministério Público, de regra), um se defende (o réu), e outro julga (o juiz). Isto existe, justamente, para prevenir injustiças, não para proteger "fascínoras" - ou alguém acha que todos os acusados sempre são culpados e que o Ministério Público nunca erra?

Quando o juiz pensa que deve garantir a "justiça", lida sempre como condenação dos (pré-)culpados; quando o juiz pensa que fazer justiça e mandar todo mundo para a cadeia por ato próprio, não raro concertado com a acusação, este juiz perde a sua nobre e dificílima função. E, é pesaroso dizer, se torna, se não equilibra a balança, peça inútil para o processo.

João Pedro C. V. Pádua
www.melaragnocpadua.com.br

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Drogas, proibicionismo e o Fantástico

Como a maioria deve estar acompanhando, nos últimos dois domingos o programa Fantástico da Rede Globo de Televisão exibiu uma reportagem sobre um tal rapaz britânico viciado em maconha. Segundo contava a reportagem, o vício fazia este rapaz tornar-se agressivo e anti-social, inclusive com relação aos pais. Além disso, sua vida era, por assim dizer, inútil, perdida entre a maconha, outras drogas - o álcool inclusive -, o computador e as brigas com a família e outras pessoas. O vídeo que retrata a suposta história deste garoto foi o mote para uma discussão com especialistas (assim chamados, ao menos) e leigos acerca da melhor alternativa para este garoto e sua família, com alternativas que variavam entre internação e entrega do rapaz à polícia - pela maconha, claro, não pelo álcool, cujo uso não é ilícito...

Para um programa televisivo que já exibiu tantas reportagens interessantes - inclusive uma com reais especialistas em psicologia e psicanálise sobre as possíveis explicações para o comportamento do pai da menina Isabella Nardoni em tê-la, supostamente, matado, matéria que fugia do lugar comum que o demonizava e declarava o mundo "perdido" (clique aqui) - para um programa tão pródigo em boas entrevistas, com especialistas sérios, esta reportagem, sem dúvida, foi uma bola fora. Para começar pela caricatura. A Maconha, uma das drogas que menos gera dependência, e um "risco muito menos sério para a saúde pública do que o álcool e o cigarro [que são drogas lícitas na maioria do mundo ocidental]", nas palavras de um estudo conduzido em nome da Organização Mundial da Saúde em 1995 (clique aqui), recebe nas imagens do vídeo uma carga simbólica de sentimentos negativos que só possui por causa desta sua própria simbolização social. Ou seja, quanto mais se associam imagens como a do menino descontrolado do Fantástico à maconha, mais se chega à conclusão de que se trata de um risco incontrolável para a saúde pública e para a sociedade. Não é à toa que durante muito tempo as marcas de cigarro associavam simbolicamente o seu produto à liberdade de cavalos selvagens, jipes no deserto e botes em rafting. Também não é à toa que as marcas de cerveja ou de outras bebidas alcoólicas associam o seu produto a mulhers esculturais, a festas animadas ou a relaxamento em relação às agruras do dia-a-dia.

Esta associação simbólica (re)cria a valoração social que recai sobre qualquer coisa - atividade, produto, processo - que tem na sociedade e na cultura desta sociedade o seu contexto significativo, o seu pano de fundo semântico. A maconha é ilícita porque é, no final das contas. Fazer mal, o álcool e o cigarro também fazem - e muito mais do que a maconha, segundo reconhece o nosso Ministério da Saúde (clique aqui). Mas a maconha é "diabólica", a maconha "destrói a nossa juventude", a maconha cria monstros como o tal inglês do vídeo. Será mesmo?

O psicólogo Luiz Paulo Guanabara, presidente da Psicotropicus, uma associação que se dedica à reforma da política de drogas no Brasil - e da qual este escriba é diretor jurídico - escreveu uma carta à produção do programa em questão alertando sobre o sensacionalismo inserto e explícito na referida matéria. A carta dele não só coloca em dúvida a autenticidade do vídeo do rapaz inglês, mas também coloca a questão no seu devido lugar e denuncia as falácias implicadas na tomada de posição do Fantástico. Segue a íntegra da carta:

" VÍDEO SOBRE MACONHA EXIBIDO NO FANTÁSTICO
PARA AMPLA DIVULGAÇÃO
Aos Produtores do Fantástico, Rede Globo de Televisão
Domingo, 06 de julho de 2008
O programa Fantástico há anos tem exibido excelentes matérias e informações de utilidade pública. Mas a peça de desinformação e de demonização da maconha aparentemente feita na Inglaterra e exibida neste domingo é propaganda barata, ridícula e mal feita. O apresentador começa dizendo que a pessoa pode ficar até dois anos presa por consumir maconha naquele país. Aqui no Brasil, de acordo com a lei de drogas em vigor, o “maconheiro” não é preso. Será que na Inglaterra a sanha punitiva chega a ponto de encarcerar por dois anos quem fuma maconha? Claro que não.
Em seguida foi exibido aquele vídeo lamentável, uma peça de propaganda que contribui para o sensacionalismo jornalístico que vende essa desinformação para uma população que não tem a menor noção dos verdadeiros perigos do uso de drogas.
O simples fato de falar de drogas como se todas fossem iguais, como se a maconha acarretasse os mesmos riscos que a cocaína, por exemplo, é outra mentira corrente na mídia, que ao longo dos anos fortaleceu essa noção equivocada no imaginário da população: a da existência de um inimigo abstrato chamado DROGA.
O vídeo é uma armação barata. Será que alguém é idiota a ponto de produzir provas contra si mesmo se deixando gravar num vídeo e correr o risco de ser preso por dois anos, segundo a matéria? O garoto foi preso? Não deveria ter sido preso imediatamente depois que o vídeo foi divulgado? E os amigos que aparecem no parque consumindo com ele, se deixaram ser filmados assim numa boa? Queriam se exibir para seus pais e professores? Queriam que todos vissem que estavam cometendo um crime?
Todo mundo sabe que a garotada que fuma maconha busca esconder isso dos pais, dos professores e de todo mundo. Quem fuma maconha em geral só revela isso para outro fumante. Nem para seu médico ele informa, com medo de ser discriminado, com medo do preconceito, um dos males de essa planta ser proibida.
É desanimador que peças de propaganda contra a maconha iguais às do começo do século passado continuem a ser produzidas e exibidas em pleno século XXI. Só faltou o adolescente matar os pais e ir ao cinema, ou dizer que maconha desenvolve peitos em homens, como faziam as peças publicitárias antimaconha daquela época. O vídeo é mal feito, a continuidade é desastrosa. O garoto de repente compra uma moto trabalhando como jardineiro. Se ele vivia “chapado” e não fazia nada, como conseguiu comprar uma moto? Ele não gastava todo seu dinheiro em maconha, como afirma o vídeo?
Qualquer pessoa que conheça um pouco os efeitos das drogas sabe que para ficar descontrolado daquele jeito só tendo algum problema mental ou usando outras drogas mais fortes, como o álcool. A mãe do menino diz para ele numa cena que ele sempre volta pra casa bêbado e sob efeito de maconha. Mas se ele bebia, não importa, o que interessa é demonizar a “droga”.
E seu comportamento agressivo, desenvolvido em apenas seis meses, pois antes era um atleta e estudante exemplar? “A maconha me relaxa”, relata o menino ao psicólogo que os pais chamaram para intervir. É uma mentira deslavada dizer que a maconha é responsável por comportamentos agressivos e por uma transformação dessa.
E as cenas de consumo explícito de maconha? Os closes do garoto fumando? Que pais exporiam seus filhos assim, e que adolescente se sujeitaria a ser gravado daquele jeito? Com pais como esses, não é à toa que o adolescente estivesse descompensado.
A votação em que os telespectadores escolheram “internação” foi surreal. O debate que se seguiu ao vídeo também. Será que os profissionais que opinaram não perceberam o engodo? A coisa toda seria um grave acinte à inteligência do telespectador, se este tivesse informação honesta sobre as drogas. E com certeza a grande maioria das pessoas bem informadas não percebeu a calculada propaganda antimaconha do vídeo exibido. O folclore da “erva diabólica” já está bem arraigado em suas cabeças.
Produtores do Fantástico, por favor, não exibam a continuação dessa porcaria prevista para o próximo programa.
Luiz Paulo Guanabara
PEDIMOS que divulguem essa carta. Para fazer sua crítica direta: http://fantastico.globo.com/ NÃO podemos deixar que peças publicitárias nefastas e mentirosas como essa continuem a ser exibidas sem críticas e indignação. Quem viu o vídeo GRASS (Super Interessante, editora Abril) vendido nas bancas de jornal, pode reconhecer na matéria do Fantástico o mesmo tipo de mentira das propagandas antimaconha estadudinenses ali exibidas.
Luiz Paulo Guanabara Psicotropicus - Centro de Políticas de Drogas Av. Presidente Vargas 590 - sala 515 20.071-000, Rio de Janeiro, Brasil Tel: (55-21) 3553-0722 www.psicotropicus.org "

João Pedro C. V. Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)

terça-feira, 1 de julho de 2008

O eleitor e o cidadão: ainda em busca da autonomia

De volta, depois de um tempo de falta de tempo - com o perdão do paradoxo -, uma questão razoavelmente antiga, mas ainda importante, merece os nosso comentários. Estou falando da questão da moralidade como requisito para o deferimento da candidatura eleitoral. A questão não é nova, porque desde pelo menos a útlima eleição alguns Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) entenderam indeferir o registro da candidatura de postulantes que tivessem processos em andamento perante e Justiça Penal - a popularmente chamada "ficha suja". Tais postulantes recorreram, a questão chegou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e, finalmente, eles conseguiram ter as suas candidaturas registradas (TSE, RO n.° 1.069, rel. min. Marcelo Ribeiro, j. 2006). Já naquela época, em que se tratava de eleições mais importantes, por assim dizer, porque envolviam cargos de maior hierarquia na estrutura federativa brasileira, muito se chiou, principalmente na grande imprensa, contra a decisão do TSE. O argumento não-jurídico, repetido agora, ia mais ou menos assim: como pode a justiça permitir que pessoas que respondem a diversos processos penais se candidatem a um cargo de poder republicano? E o argumento jurídico: sendo a moralidade e a proibidade requisitos para a capacidade eleitoral passiva - elegibilidade - (art. 14, § 9° da Constituição de 1988) os candidatos que tinham "ficha suja" não poderiam ser eleitos, haja vista que não preenchiam tal requisito.

Nas vindouras eleições, novamente a questão vem à tona. Só que, agora, há uma espécie de disputa institucional dentro da magistratura a seu respeito. É que, de novo, o TSE, por uma ainda mais apertada maioria (4 a 3) decidiu ser inconstitucional o indeferimento do registro da candidatura de alguém com base em apreciações sobre a sua folha de antecedentes criminais ou sobre a lista de processos a que esse alguém possa estar respondendo. A diferença, como dito, é que a decisão, desta vez, gerou uma reação múltipla em várias frentes institucionais. O próprio presidente atual do TSE, min. Carlos Britto, já deu mais de uma entrevista dizendo que discorda da decisão - posição, de resto, já manifestada em voto vencido no julgamento acima citado. Também a grande imprensa vem se posicionando cada vez mais claramente contra a mesma decisão, alegando que macula a lisura eleitoral e fomenta a corrupção. Da mesma maneira, o Colégio de Presidentes dos TREs se posicionou contra ela (clique aqui) e já disse que apóia que os TREs não sigam a orientação do TSE - o que, na prática, pode inviabilizar uma campanha eleitoral, paralisada até que o demora TSE reforme a decisão inferior, algo, inclusive, expressamente levantada pelo presidente do TRE/RJ, des. Roberto Wider. Por fim, e também ativamente contrária à orientação do TSE, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) lançou um sítio na internet em que, além de fomentar o combate à corrupção eleitoral, há um link para uma lista de candidatos que respondem a processos na justiça (clique aqui).

Obviamente, a mobilização da sociedade civil - ainda que por meio de magistrados - apontando para a necessidade do voto consciente e da luta contra a corrupção político-eleitoral é louvável. Contra isso, nem os sólidos e corretos argumentos jurídicos vencedores nas decisões majoritárias do TSE - o principal: não existe causa de inelegibilidade na Lei Complementar 64 de 18.05.1990, regulamentadora do citado § 9° da constituição, que preveja a hipótese da "ficha suja" ou processos em andamento; o segundo: direito à presunção de inocência (art. 5°, LVII da Constiução de 1988) -; contra isso, nem tais argumentos podem constituir instrumento válido de crítica. Toda mobilzação social para debate de idéias e formação político-social de opinião e vontade devem ser valorizados, venha de que setor social venha.

O problema político, mais importante do que o jurídico, neste caso, e do ponto-de-vista da democracia, é que a mobilização contra o deferimento da candidatura dos "fichas-sujas" não vem em favor da liberação da formação democrática da vontade eleitoral, senão vem para considerá-la viciada por presunção e carente de tutela. Veja o caro leitor: qual o fundamento - político - para declarar inelegíveis - ou seja lá o termo de eufemismo jurídico que se queira - candidatos que ainda não perderam seus direitos eleitorais como efeito de uma condenação penal ou de improbidade administrativa? Em outras palavras, a que serve, politicamente, o embarreiramento da candidatura de quem tem processos contra si em curso?

A resposta é simples: o medo de que candidatos nessa situação sejam eleitos e, uma vez empossados, além de terem mais acesso a fontes de corrupção, ainda gozem de eventual foro privilegiado. Simples mais insatisfatória. Notem que, para qualquer pessoa ser eleita, com o perdão do truísmo, é necessário que ela alcance uma votação tal que a permita ser declarada eleita - majoritária ou proporcionalmente. Isso quer dizer que é preciso que as pessoas, os eleitores, os cidadãos, efetivamente, votem no tal candidato; e votem em um bom número - à parte, por óbvio, o abuso de poder político ou de poder eleitoral, estas, sim causas legais expressas de inelegibilidade. Então, o medo é de que os eleitores, os cidadãos, sejam iludidos por estes candidatos "sujos", os quais candidatos acabariam, com isso, eleitos. Ora, isso equivale a dizer, como mencionado acima, que os pobres eleitores, que não sabem votar, precisam ser "protegidos" desta influência eleitoral indevida. E quem os protegerá, senão o poder judiciário, o pai de todos os "pobres" cidadãos, e guardião da moral e da ética social - especialmente no que tange às eleições?

Será que, um dia, vamos achar que o cidadão deve poder escolher votar no candidato que ele quiser, independemente da apreciação judiciária - sempre demasiado subjetiva - sobre a ética ou a moral deste candidato - excluídos o caso de perda de direitos políticos por efeitos legais diretos da condenação, conforme já dito? Será que um dia vamos considerar que pedagogia cívica só se dá - só se pode dar - com autonomia privada e autonomia pública plenamente garantidas e que, do contrário, temos, ao revés da autonomia, tutela estatal, seja em que poder ela estiver? Será que vamos ter, algum dia, um país de cidadãos?

João Pedro C. V. Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)

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Em tempo: faço coro à deliciosamente capiciosa pergunta do portal Migalhas (http://www.migalhas.com.br/), sobre a atitude da AMB, de, digamos, fiscal eleitoral: será que a AMB vai também fiscalizar o próprio judiciário, fiscalizador das eleições, e colocar em um pomposo anexo do seu site uma lista de juízes que respondem ou responderam a processos - e, quem sabe, representações disciplinares?