quarta-feira, 21 de maio de 2008

Corporativismo em dois atos

Corporativismo, numa definição tentativa, é a qualidade de defender sectariamente os interesses privados de uma corporação ou dos membros de uma corporação. O próprio termo corporação é muito antigo e parece se ligar às antigas "corporações de ofício", comuns na Idade Média, quando a vida econômico-social burguesa ainda não estava desenvolvida o suficiente para que as indústrias e a divisão entre proletários e empresários tomasse o lugar do corporativismo. A ressurreição do corporativismo veio do fascismo europeu e de sua pretensão de regular e conciliar, no espaço do estado, os interesses contrapostos do capital e do trabalho. Neste caso, obviamente, era um corporativismo de estado, em que o árbitro supremo era o líder fascista.

No Brasil, em que o estado sempre foi o grande comandante da sociedade, ora repressiva, ora paternalisticamente (como sempre defendi em vários escritos - clique aqui), o corporativismo mediado pelo estado pareceu ainda mais natural - embora menos violento e flagrante - do que na Europa Ocidental, outrora (mais ou menos) liberal. Durante o Governo Vargas, aliás, o corporativismo de estado ficou ainda mais insittucionalizado quando a Constiutição de 1934 recepcionou o instituto jurídico europeu da representação profissional, sob a forma extrema de dar voto aos representantes das categorias econômico-sociais, inseridas no Congresso Nacional sem voto popular.

Em todo caso, hoje, séc. XXI, 20 anos da vigência da mais estável - é preciso reconhecer - ordem constitucional republicana brasileira, causa mais espanto e tristeza ver que a tradição estatista e corporativista brasileira ainda permaneça tão forte - em alguns casos, ainda mais forte do que já foi. A relativa liberação que a sociedade civil pôde ver em relação ao estado nos últimos anos, em muitos casos, ao invés de contribuir para a formação de uma esfera pública e de um espaço público robustos e independentes, converteu-se em novas reinvindicações estratégicas e corporativistas, as quais, no mais das vezes, se voltam para a atuação, ora repressiva, ora paternalista do próprio estado. Foi justamente isso o que duas respeitáveis instituições da justiça fizeram, respectivamente, e, indiretamente, uma contra outra, em atuações recentes.

Ato 1 - A Câmara dos Deputados aprovou, em plenário, o substitutivo da Comissão de Constituição e Justiça ao Projeto de Lei n.º 5762/2005, de autoria, o substitutivo, do deputado Marcelo Ortiz, do PV/SP, que é, também, advogado. Segundo a notícia do informativo Migalhas (clique aqui), a OAB/SP comemorou muito a aprovação do projeto, que agora segue para o Senado, brandindo aqueles tradicionais e meio mofados argumentos: "o advogado exerce múnus público"; "as prerrogativas do advogado beneficiam a parte"; "os advogados são Função Essencial à Justiça, segundo a Constituição de 1988"; etc. Argumentos que todos nós, do mundo jurídico - mesmo os que não são advogados -, conhecemos de cor, não nos cansamos de repetir - mesmo os que não são advogados -, e que, ainda assim, vemos constantemente, ora desmentidos na prática pelos mais diversos funcionários e autoridades do mundo jurídico - basta lembrar que vários, se não todos os, ministros do STF exigem ora marcada para receber advogados, violando literal dispositivo de lei (n.º 8.906/94, art. 7º, VIII) -, ora abusados pelos próprios advogados que não se conformam com o fato de que, embora muitas as suas prerrogativas, não podem tudo.

E agora, aprovando um redundante projeto de lei, os advogados pensam que estão acabando com a arbitrariedade de autoridades jurídicas contra eles; ou, pior, pensam que estão "dando uma lição" aos recalcitrantes. Não percebem que este ato corporativista, em primeiro lugar, será, certamente, mal recebido pelos demais trabalhadores da comunidade jurídica, os quais se sentirão injustamente pressionados e vítimas de generalização odiosa; em segundo lugar, que os membros do MP que acusarão e os juízes que julgarão estes "novos" crimes podem ser, precisamente, aqueles mesmos criados nesta cultura também corporativista de desrespeito à figura do outro, que, no caso do processo, é o advogado, e, como resultado, provavelmente teremos mais uma "lei que "não pega no Brasil"; por fim, em terceiro lugar, não percebem que não há, notadamente, nada de novo nestes "novos" crimes, já tipificados como Violência Arbitrária (art. 322 do CP), Abuso de Poder (art. 350) e Abuso de Autoridade (art. 3º e 4º da Lei n.º 4.898/65), este último majoritariamente tido como revogador implícito dos dois primeiros. Assim a OAB acaba por se colocar como agente da inflação legislativa penal, fenômeno que muitos dos seus membros e conselheiros, na qualidade de advogados ou doutrinadores, tão freqüente quanto corretamente criticam com afinco. Porém, a OAB não está sozinha no corporativismo.

Ato 2: Provando que o corporativismo é universal, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), órgão normalmente muito corporativista, mas às vezes, surpreendente no desprendimento quanto aos presumíveis interesses estratégicos de seu membros, mais uma vez deu mostra de que estes últimos momentos são excepcionais. Ajuizou ontem, dia 20 de maio de 2008, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que recebeu o n.º 4078, impugnando o art. 1º, I da Lei n.º 7.746/86, que disciplina o modo de recrutamento dos ministros do STJ na classe dos magistrados. A AMB quer com esta ADI que, em nome do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade - ou seja: uma maneira de traduzir em juridiquês o fato de que ela quer deste jeito, porque não concorda com que seja do jeito em que atualmente está -, seja dada interpretação conforme a constituição ao dito artigo para declarar que na classe dos magistrados (2/3 da composição do STJ) só se podem nomear para aquele tribunal os "magistrados de carreira", isto é: os que não componham os tribunais já na vaga do quinto constitucional - da advocacia ou do MP.

A própria expressão "magistrado de carreira" é meio corporativista: magistrado que é magistrado está na carreira da magistratura até que dela saia, por aposentadoria ou qualquer outra razão; ou não? Em todo caso, o que a AMB alega é que, se os magistrados "fora da carreira" puderem ser nomeados na qualidade de magistrados, o 1/3 do STJ reservado alternadamente a advogados e membros do MP poderá tornar-se muito mais do que 1/3, se se contar que nos 2/3 dos magistrados poderão entrar tantos outros desembargadores oriundos do quinto constitucional, de modo que, eventualmente, o STJ terá mais "não-magistrados de carreira" do que "sim-magistrados de carreira".

Não interessa entrar no argumento jurídico propriamente dito. Quem quiser ver a inicial da ADI em questão, clique aqui. O que choca, por detrás das quase cinqüenta laudas de contas fracionárias e termos jurídicos de pertinência duvidosa é o fato de que, no fundo, o que AMB parece sugerir é que há dois tipos de magistrados: o magistrado "puro", que começou como juiz de primeira instância e ascendeu à segunda para, daí, em alguns casos, pleiteou vaga na corte superior; e o magistrado "infiltrado", que não seguiu este caminho, mas se valeu de um "enxerto" constitucional para galgar a sua posição no tribunal. Se me permitem continuar na metáfora de genética botânica, o magistrado "puro" pode ver seu galho crescendo normalmente, mas o "magistrado-enxerto" tem de ter seu galho podado, já que, originalmente, não pertence àquela árvore. Como se a Justiça, em vez de uma função de estado, uma ramificação de seu poder, fosse, na verdade, uma profissão como qualquer outra, um ofício como qualquer outro, em que a corporação tem de zelar pelos interesses profissionais da classe.

Em ambos os atos, triste a sina do corporativismo no estado ou virado para o estado, bem à moda brasileira; e justo em algumas das carreiras que deveriam zelar pela Justiça e pelo direito.

João Pedro C. V. Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)

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