Falando nisso, muitas vezes, já que sou criminalista, me perguntam sobre a tal lei seca e sobre a minha opinião acerca dela. Já dei a minha opinião muitas vezes, informalmente, em particular, mas nunca a tinha exposto em público. Anteontem, aqui de Buenos Aires, onde estou no momento, recebi um incentivo para organizar esta minha opinião e publicá-la, ainda que com a informalidade que pede um blog.
Em primiero lugar, a tal "lei seca" é a Lei n.º 11.705 de 19.07.2008, que altera a Lei n.º 9.503 de 23.09.1997 (Código de Trânsito Brasileiro). Seu primeiro objetivo, expresso no seu art. 1º, é "estabelecer alcoolemia 0 (zero) e impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do álcool [...]." (grifo nosso: quer dizer, já havia penalidades, só que eram menos severas). Ainda assim, autoridades da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e do Ministério da Saúde, presentes a um congresso em São Paulo, ao qual estive presente, em agosto, repeliram este apelido popular que a mencionada lei recebeu (lei "seca"). Argumentaram, com alguma razão, que esta lei não proibiu o consumo do álcool - o que seria um absurdo, já que só se proíbe o consumo de drogas mais pesadas, tais como a maconha e a folha de coca -, mas que somente restringiram o consumo desta substância psicoativa no que se relaciona à direção de veículos automotores.
Mas, verdade seja dita, nunca achei que eles tivessem toda a razão. Em primiero lugar, se realmente ninguém está proibido de beber, estão todos proibidos de beber qualquer quantidade de álcool se forem dirigir, qualquer que seja a pessoa, qualquer que seja o local, qualquer que seja a distância. Isto, dado o caráter social das bebidas alcóolicas - exceto para os alcóolatras - é uma proibição e tanto. Poucas pessoas, em relação aos usuários recreativos e esporádicos - mesmo entre algunas habituais -, poucas pessoas, dizia, bebem bebidas alcóolicas sozinhas. E quando o fazem, fazem-no em casa, de maneira que dificilmente terão de dirigir depois. Embora não tenha visto nenhum estudo neste sentido, creio ser uma observação etnológica informal válida e todos poderão concordar com isso - novamente, ressalva feita aos aditos em álcool, que, naturalmente, também não responderiam a qualquer lei repressiva, porquanto têm compulsão (física) a consumir a substância.
O que nos leva à segunda observação. Quando ouvi as autoridades de saúde mental mencionadas acima, todas muito entusiasmadas com a lei (seca) em questão, não pude deixar de me perguntar se a propositura da alcoolemia zero para motoristas tinha algum fundamento racional ou se era, mais uma vez, atitude política meramente voluntarista e moralizante. Por isso, ainda em São Paulo, em agosto, mandei, na qualidade de cidadão comum, um e-mail para o Ministério da Saúde, perguntando se havia estudo(s) no(s) qual(is) se basearam os técnicos que cunharam proposta tão radical quanto restringir a zero a quantidade de álcool possível para o motorista. Sem que eu me possa dizer surpreso, até hoje não recebi resposta.
O que eu recebi, anteontem, foi, inesperadamente, um informativo da Câmara dos Deputados que dava conta da propositura de um projeto de lei, de n.º 3715/08, do deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS), que visava, justamente, no momento em que a sociedade se teria "convencido" do acerto da lei seca, (quase) reverter o que tinha sido feito, em termos legislativos. O projeto de lei pretende voltar o limite de alcoolemia para caracterizar infração de trânsito a 0,6 g/L (grama por litro) de sangue - como era antes da lei seca -, além de limitar a apreensão do veículo e da carteira de habilitação para concentrações acima de 1,2 g/L. Por fim o projeto limita a caracterização do crime de direção sob efeito de álcool a concentrações a partir de 1,6 g/L.
Na justificativa do mencionado projeto, embora seja razoavelmente confusa e utilize, sem citar, partes de um blog - referenciado adiante -, ainda assim, se apresenta, agora sim, um estudo epidemiológico sobre o efeito do álcool em acidentes de trânsito, o capiteneado pela dra. Vânia Leyton (USP) (clique aqui), e uma experiência internacional, a da França, relatada por um post no blog do ativista Luis Favre (clique aqui). No estudo da dra. Leyton, baseada em análise toxicológica de mais de 2000 mortos em acidentes automobilísticos no ano de 1999 na cidade de São Paulo, o que se descobriu, além da correlação positiva entre acidentes de trânsito fatais e alcoolemia positiva (da ordem de 50% - ainda que se compute nestes números a alcoolemia positiva em vítimas de atropelamento), o que se descobriu, dizia, era que a média de alcoolemia em tais vítimas, mesmo entre as mulheres, que têm médias menores, superava o 1 g/L (e variava de 0,2 g/L a até mais de 5g/L!). Se se contar só a alcoolemia acima de 0,6 g/L (o que hoje se considera crime - e de perigo abstrato), mais de 96% das vítimas fatais tinham esta concentração, o que, somado ao fato de que ao menos 50% do total de vítimas não tinha alcoolemia positiva, e ao fato de que se contavam também vítimas de atropelamentos - as quais, evidentemente, não dirigiam veículo -, tudo isso torna os quase 4% restantes praticamente insignificantes do ponto de vista estatístico.
Pois bem, não fosse isso suficiente, na postagem do blog mencionado, deu-se notícia de que a França, que tem correlação semelhante entre abuso de álcool e acidentes fatais de trânsito, teve oportunidade de discutir a acoolemia zero, diante de tais números, mas não a aceitou. E sabe qual o argumento que uma das principais ativistas anti-álcool no trânsito francesas, Chantal Perrichon, usou para justificar a sua concordância com o rechaço desta medida?
"Na nossa associação não queremos que a lei seja alterada para a tolerância zero, porque pensamos que isso seria penalizar o conjunto da população em relação àqueles que realmente são uma ameaça para os demais. Segundo as estatísticas, 80% dos acidentes mortais são provocados por condutores com um teor alcoólico superior a 1,2 g/l no sangue. Essas pessoas são as mais perigosas. Não vejo por que deveríamos, num primeiro momento, penalizar o conjunto da população, enquanto que não é o álcool ingerido de forma ocasional ou excepcional a maior ameaça"Que tal? Muito racional e coerente, não? Então por que não tivemos uma discussão deste tipo no Brasil - ou, ao menos, por que ela não envolveu a população como um todo? Por que a medida da tolerância zero - como tantas outras "tolerâncias zero" - para o álcool no trânsito alcançou tão grande unanimidade? Por que se aceitaram as notícias de que em um mês tal lei seca já teria feito efeito, quando é óbvio que uma correlação estatística deste tipo só pode ser feita em períodos de tempo muito maiores, a fim de excluir todas as outras possíveis explicações para a variação da taxa? Por que um argumento óbvio como o do deputado Pompeo de Mattos, que antes já havia sido pensado mais proximamente pelo meu amigo Rodrigo Moreira - de que essa diminuição dos acidentes, se pudesse ser logo correlacionada à edição da lei seca, seria, em verdade, efeito da maior e mais ostensiva fiscalização do alcoolismo no trânsito, conduta que sempre fora punida pelo Código de Trânsito Brasileiro - por que um argumento como este nunca fez voz na sociedade e nos meios de comunicação? Por que, por fim, se vende sempre esta idéia de que quem é contra este radicalismo sem apoio em estudos e debates que o racionalizem é "defensor de que as pessoas dirijam bêbadas por aí", quando, na verdade, do que se trata é de manejar refletidamente os riscos numa sociedade de riscos - e seus reflexos na liberdade (sempre arriscada) dos sujeitos de direitos?
É disto, na verdade, que se trata. Hoje, alguns meses depois da entrada em vigor da "salvadora lei seca", como sempre no Brasil, já arrefeceu a fiscalização, e não sabemos o que ocorreu com os números tão impressionantes que se produziram na diminuição de acidentes automobilísticos. Uma última pergunta, então: vamos sempre ver nossa liberdade tolhida pela próxima medida populista de "salvação" do povo pelo estado?
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Em tempo: para os penalistas, uma reflexão adicional: lembram-se que recente teoria do direito penal reinterpreta a edição de crimes de perigo abstrato - que antecipam a punição para antes do resultado danoso, ou mesmo do real perigo de sua ocorrência - como uma forma de neutralizar o "inimigo da sociedade"? Uma dica: o autor desta teoria começa com "G" e termina com Jakobs...
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Em tempo: para os penalistas, uma reflexão adicional: lembram-se que recente teoria do direito penal reinterpreta a edição de crimes de perigo abstrato - que antecipam a punição para antes do resultado danoso, ou mesmo do real perigo de sua ocorrência - como uma forma de neutralizar o "inimigo da sociedade"? Uma dica: o autor desta teoria começa com "G" e termina com Jakobs...
João Pedro Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)