sábado, 27 de setembro de 2008

A lei seca e a secura do debate

Fiquei muito tempo sem escrever. O tempo é curto, os assuntos são muitos e acho que só vale a pena escrever um post se ele for servir para informar os leitores e fomentar debate entre eles. Do contrário, o blog não passa realmente de um diário eletrônico e público, coisa muito pouco afeita a um blog que se liga a um escritório de advocacia.

Falando nisso, muitas vezes, já que sou criminalista, me perguntam sobre a tal lei seca e sobre a minha opinião acerca dela. Já dei a minha opinião muitas vezes, informalmente, em particular, mas nunca a tinha exposto em público. Anteontem, aqui de Buenos Aires, onde estou no momento, recebi um incentivo para organizar esta minha opinião e publicá-la, ainda que com a informalidade que pede um blog.

Em primiero lugar, a tal "lei seca" é a Lei n.º 11.705 de 19.07.2008, que altera a Lei n.º 9.503 de 23.09.1997 (Código de Trânsito Brasileiro). Seu primeiro objetivo, expresso no seu art. 1º, é "estabelecer alcoolemia 0 (zero) e impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do álcool [...]." (grifo nosso: quer dizer, já havia penalidades, só que eram menos severas). Ainda assim, autoridades da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e do Ministério da Saúde, presentes a um congresso em São Paulo, ao qual estive presente, em agosto, repeliram este apelido popular que a mencionada lei recebeu (lei "seca"). Argumentaram, com alguma razão, que esta lei não proibiu o consumo do álcool - o que seria um absurdo, já que só se proíbe o consumo de drogas mais pesadas, tais como a maconha e a folha de coca -, mas que somente restringiram o consumo desta substância psicoativa no que se relaciona à direção de veículos automotores.

Mas, verdade seja dita, nunca achei que eles tivessem toda a razão. Em primiero lugar, se realmente ninguém está proibido de beber, estão todos proibidos de beber qualquer quantidade de álcool se forem dirigir, qualquer que seja a pessoa, qualquer que seja o local, qualquer que seja a distância. Isto, dado o caráter social das bebidas alcóolicas - exceto para os alcóolatras - é uma proibição e tanto. Poucas pessoas, em relação aos usuários recreativos e esporádicos - mesmo entre algunas habituais -, poucas pessoas, dizia, bebem bebidas alcóolicas sozinhas. E quando o fazem, fazem-no em casa, de maneira que dificilmente terão de dirigir depois. Embora não tenha visto nenhum estudo neste sentido, creio ser uma observação etnológica informal válida e todos poderão concordar com isso - novamente, ressalva feita aos aditos em álcool, que, naturalmente, também não responderiam a qualquer lei repressiva, porquanto têm compulsão (física) a consumir a substância.

O que nos leva à segunda observação. Quando ouvi as autoridades de saúde mental mencionadas acima, todas muito entusiasmadas com a lei (seca) em questão, não pude deixar de me perguntar se a propositura da alcoolemia zero para motoristas tinha algum fundamento racional ou se era, mais uma vez, atitude política meramente voluntarista e moralizante. Por isso, ainda em São Paulo, em agosto, mandei, na qualidade de cidadão comum, um e-mail para o Ministério da Saúde, perguntando se havia estudo(s) no(s) qual(is) se basearam os técnicos que cunharam proposta tão radical quanto restringir a zero a quantidade de álcool possível para o motorista. Sem que eu me possa dizer surpreso, até hoje não recebi resposta.

O que eu recebi, anteontem, foi, inesperadamente, um informativo da Câmara dos Deputados que dava conta da propositura de um projeto de lei, de n.º 3715/08, do deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS), que visava, justamente, no momento em que a sociedade se teria "convencido" do acerto da lei seca, (quase) reverter o que tinha sido feito, em termos legislativos. O projeto de lei pretende voltar o limite de alcoolemia para caracterizar infração de trânsito a 0,6 g/L (grama por litro) de sangue - como era antes da lei seca -, além de limitar a apreensão do veículo e da carteira de habilitação para concentrações acima de 1,2 g/L. Por fim o projeto limita a caracterização do crime de direção sob efeito de álcool a concentrações a partir de 1,6 g/L.

Na justificativa do mencionado projeto, embora seja razoavelmente confusa e utilize, sem citar, partes de um blog - referenciado adiante -, ainda assim, se apresenta, agora sim, um estudo epidemiológico sobre o efeito do álcool em acidentes de trânsito, o capiteneado pela dra. Vânia Leyton (USP) (clique aqui), e uma experiência internacional, a da França, relatada por um post no blog do ativista Luis Favre (clique aqui). No estudo da dra. Leyton, baseada em análise toxicológica de mais de 2000 mortos em acidentes automobilísticos no ano de 1999 na cidade de São Paulo, o que se descobriu, além da correlação positiva entre acidentes de trânsito fatais e alcoolemia positiva (da ordem de 50% - ainda que se compute nestes números a alcoolemia positiva em vítimas de atropelamento), o que se descobriu, dizia, era que a média de alcoolemia em tais vítimas, mesmo entre as mulheres, que têm médias menores, superava o 1 g/L (e variava de 0,2 g/L a até mais de 5g/L!). Se se contar só a alcoolemia acima de 0,6 g/L (o que hoje se considera crime - e de perigo abstrato), mais de 96% das vítimas fatais tinham esta concentração, o que, somado ao fato de que ao menos 50% do total de vítimas não tinha alcoolemia positiva, e ao fato de que se contavam também vítimas de atropelamentos - as quais, evidentemente, não dirigiam veículo -, tudo isso torna os quase 4% restantes praticamente insignificantes do ponto de vista estatístico.

Pois bem, não fosse isso suficiente, na postagem do blog mencionado, deu-se notícia de que a França, que tem correlação semelhante entre abuso de álcool e acidentes fatais de trânsito, teve oportunidade de discutir a acoolemia zero, diante de tais números, mas não a aceitou. E sabe qual o argumento que uma das principais ativistas anti-álcool no trânsito francesas, Chantal Perrichon, usou para justificar a sua concordância com o rechaço desta medida?
"Na nossa associação não queremos que a lei seja alterada para a tolerância zero, porque pensamos que isso seria penalizar o conjunto da população em relação àqueles que realmente são uma ameaça para os demais. Segundo as estatísticas, 80% dos acidentes mortais são provocados por condutores com um teor alcoólico superior a 1,2 g/l no sangue. Essas pessoas são as mais perigosas. Não vejo por que deveríamos, num primeiro momento, penalizar o conjunto da população, enquanto que não é o álcool ingerido de forma ocasional ou excepcional a maior ameaça"
Que tal? Muito racional e coerente, não? Então por que não tivemos uma discussão deste tipo no Brasil - ou, ao menos, por que ela não envolveu a população como um todo? Por que a medida da tolerância zero - como tantas outras "tolerâncias zero" - para o álcool no trânsito alcançou tão grande unanimidade? Por que se aceitaram as notícias de que em um mês tal lei seca já teria feito efeito, quando é óbvio que uma correlação estatística deste tipo só pode ser feita em períodos de tempo muito maiores, a fim de excluir todas as outras possíveis explicações para a variação da taxa? Por que um argumento óbvio como o do deputado Pompeo de Mattos, que antes já havia sido pensado mais proximamente pelo meu amigo Rodrigo Moreira - de que essa diminuição dos acidentes, se pudesse ser logo correlacionada à edição da lei seca, seria, em verdade, efeito da maior e mais ostensiva fiscalização do alcoolismo no trânsito, conduta que sempre fora punida pelo Código de Trânsito Brasileiro - por que um argumento como este nunca fez voz na sociedade e nos meios de comunicação? Por que, por fim, se vende sempre esta idéia de que quem é contra este radicalismo sem apoio em estudos e debates que o racionalizem é "defensor de que as pessoas dirijam bêbadas por aí", quando, na verdade, do que se trata é de manejar refletidamente os riscos numa sociedade de riscos - e seus reflexos na liberdade (sempre arriscada) dos sujeitos de direitos?

É disto, na verdade, que se trata. Hoje, alguns meses depois da entrada em vigor da "salvadora lei seca", como sempre no Brasil, já arrefeceu a fiscalização, e não sabemos o que ocorreu com os números tão impressionantes que se produziram na diminuição de acidentes automobilísticos. Uma última pergunta, então: vamos sempre ver nossa liberdade tolhida pela próxima medida populista de "salvação" do povo pelo estado?

* * *
Em tempo: para os penalistas, uma reflexão adicional: lembram-se que recente teoria do direito penal reinterpreta a edição de crimes de perigo abstrato - que antecipam a punição para antes do resultado danoso, ou mesmo do real perigo de sua ocorrência - como uma forma de neutralizar o "inimigo da sociedade"? Uma dica: o autor desta teoria começa com "G" e termina com Jakobs...

João Pedro Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

A ferradura e as garantias processuais

Em uma das mais interessante cenas do filme "O que é isso, companhaneiro" (1987), de Bruno Barreto, adaptado do romance homônimo de Fernando Gabeira, um ator coadjuvante, que faz o papel de amigo do personagem do Fernando, após criticado por ser muito apático e não se engajar na luta armada contra a ditadura, responde algo como: "vocês e a ditadura são como as duas pontas de uma ferradura: parecem muito distantes, mas na verdade estão muito próximos". O que, naturalmente, o nosso personagem queria dizer ao do Fernando é que de nada adiantava lutar contra a ditadura usando os métodos da própria ditadura, ou seja: seqüestro, tortura, terrorismo, coerção; violência, em geral, enfim.

Pois bem, no mundo jurídico - jurídico-penal, especialmente - é muito comum uma dualidade entre os assim-chamados "garantistas" (às vezes também chamados "liberais" ou "minimalistas") e os assim-chamados "punitivistas" (embora este nome seja menos estabelecido e mais intercambiável com "duros", "maximalistas", "sancionatórios" e outros mais ou menos completos sinônimos). A idéia é a seguinte: os "garantistas" - cujo nome deriva de uma obra clássica de filosofia penal, tão citada quanto pouco lida, chamada "Direito e Razão" e escrita pelo ex-juiz italiano Luigi Ferrajoli - os "garantistas" acreditariam que o direito penal teria de ser mínimo, ou seja, aplicar-se a pouquíssimos casos, somente onde o seu amargo remédio, a pena de prisão, fosse estritamente necessário em relação à violação das situações de normalidade social consideradas mais vitais pela ordem jurídica - os chamados bens jurídicos (ou jurídico-penais).

Os "punitivistas", por sua vez, parecem concordar com o direito penal seja um direito amargo, mas toleram uma maior expansão de sua aplicação. E fazem isso, em virtude de acreditarem que várias condutas violam os tais bens jurídicos fundamentais da sociedade, e que, por isso, merecem punição mais severa, a qual punição, pode o direito penal fornecer.

Como conseqüência, os "garantistas" procuram estruturar um processo penal muito formalizado, que contenha procedimentos rígidos para todos os seus atos. Com isso, procuram ainda mais reduzir o âmbito de atuação do direito penal e garantir - daí o nome - que os acusados de crimes sejam protegidos ao máximo em sua individualidade e situação jurídica; além de somente serem condenados quando não puder mais pairar, no bojo do processo, dúvida empiricamente ou juridicamente relevante sobre o cometimento do crime.

Volarei aos "punitivistas" num instante. A idéia dos garantistas, no entanto, parece lógica, certo? - ao menos no plano processual. Temos de cercar de garantias rígidas todos os acusados de crime; afinal eles estão sob um pesado jugo coercitivo do estado, e precisamos prevenir esta delicada atividade estatal contra injustiças, perseguições, falhas, despreparo, e falta de dedicação humanos, etc. De novo, os "punivistas" sérios também concordam com isso e só disso descordaria(m) os saudosos da(s) ditadura(s) - à esquerda ou à direita. O "garantismo", neste ponto, de novo como sugere o nome, visa apenas a garantir o sujeito de direitos - qualquer cidadão ou habitante do Brasil - contra abusos e malversações de poder - especialmente do poder de punir.

Mas o que acontece quando o garantismo se torna abuso? O juiz federal André Lenart (aqui do Rio de Janeiro) tem um blog chamado "Reserva de Justiça" em que, de vez em quando, coloca histórias dantescas - como a do processo de acusação por homicídio do jornalista Pimenta Neves - de recursos que se multiplicam na mesma instância, debatendo questões que ou já foram apropriadamente resolvidas, ou que, simplesmente, não importam nem para preservar o réu, nem para lhe garantir ampla defesa. Com razão ele critica estes episódios e com razão ele lhos chama pelo pejorativo apelido forense: "chicanas" - se bem que muitas vezes as críticas dele levam a conclusões mais fortes, nas quais ele, com todo o respeito, não tem nenhuma razão.

Garantismo não é chicana e a defesa tem o dever - inclusive legal - de se dar por vencida, quando tiver esgotado seus meios lícitos de impugnação. Injustiças pontuais são inevitáveis, embora muitíssimo lamentáveis e, se houver como prová-las, em algum momento, nem a decisão judicial definitiva - ou não tão definitiva assim - é obstáculo: para o condenado - mas não para a acusação, quanto ao absolvido -, existe a revisão criminal, que serve, justamente, a desfazer uma decisão que se achava definitiva (ou, em linguagem técnica, para desconstituir a coisa julgada) - isso, obviamente, não quer dizer que devamos nos contentar com injustiças, mas somente que, humanos, não podemos aspirar à perfeição: podemos, quando muito, procurar garantir que algumas instituições minorem a quantidade e os efeitos das falhas humanas.

Em todo caso, é preciso que a definitividade da decisão condenatória se deixe produzir, por mais que tal definitividade possa se provar, mais adiante, nem tão definitiva assim. E aqui, a primeira ferradura processual penal: "punitivistas" exacerbados, que acham que qualquer garantia processual é chicana e que pensam - como ouvimos mais do que deveríamos ouvir no foro - que "aos inocentes, a pena mínima" parecem muito distantes, mas na verdade estão muito próximos dos "garantistas" exacerbados, que pensam que qualquer condenação é injusta e autoritária, ou que faz parte da ampla defesa interpor recursos claramente incabíveis ou destituídos de fundamento, apenas para atrasar a definição do processo.

Existe, ainda, uma outra - e talvez mais perversa - ferradura processual. E esta, sinto muito, se deve muito mais aos "punivistas". Muitos dos argumentos anti-garantias processuais mais estendidas e profundas de que estes últimos se valem partem do fato de que, como todos sabemos, embora escritas em normas jurídicas claras, as garantias não valem, totalmente, para criminosos que não têm recursos para arcar com advogados mais bem preparados. Isto porque, digamos, um favelado acusado por roubo, preso em flagrante, tem grandes chances de apanhar e ser torturado pela polícia - afinal, é um "vagabundo" -, de não ter nem considerado seu direito, eventualmente, de responder ao processo em liberdade, de não ter entrevista reservada com o defensor público senão minutos antes de sua primeira participação no processo - quando não há tempo de preparar nenhuma defesa que preste -; enfim, este sujeito, criminoso ou não tem grande chances de não ter quase nenhuma garantia respeitada, inclusive porque muitos juízes, que deveriam zelar por isso, também acham que se trata de um "vagabundo": "quem mandou roubar?"

Pois bem, alguns "punitivistas", especialmente no âmbito do sistema penal federal, que lida com crimes de pessoas de mais recursos e classe social mais privilegiada (crimes do colarinho branco, como definiu um criminólogo americano no meio do século passado); alguns "punitivistas" acham que, como não há garantias para os mais pobres, também não deveria haver para os mais ricos. Usam, ainda, para isso, o contraste flagrante entre abuso de garantias pelos mais ricos e total falta delas para os mais pobres.

Aqui, de novo, embora pareçam ser situações muito distantes, estão elas muito próximas. Garantias são garantias. Elas tem de valer, sem abuso, para ricos, pobres, remediados, brancos, negros, homossexuais, heterossexuais, sulistas, nordestinos, juízes, advogados, empresários, trombadinhas, enfim: para qualquer pessoa acusada de crime. É justamente porque o processo penal se estrutura para a reconstrução fática do evento supostamente criminoso, e para a sua caracterização como, de fato e de direito, criminoso, é justamente por isso que não importa quem pode ou não pode pagar advogado, quem tem ou não tem dinheiro. O que importa - e é papel do juiz zelar por isso - é que as garantias processuais do acusado sejam efetivamente levadas em conta, não importa o quão inúteis pareçam ao juiz ou à acusação. É a única parte da estrutura processual que é despersonalizada, ou seja: que não depende de avaliação subjetiva de um pessoa investida de autoridade.

Quem aponta para o fato de que as garantias não valem para os pobres, como crítica ao fato de valerem - às vezes demasiado - para os ricos, na verdade, parece não querer que elas valham para ninguém; parece querer que os ricos fiquem iguais aos pobres, submetidos à autoridade desmesurada do estado, e não o contrário. Pois é o contrário que quebra a distância aparente desta ferradura e igualiza as situações: garantias para pobres e ricos. Direito penal pode ser instrumento de controle social, mas certamente não é instrumento de justiça social - nem num sentido, nem em outro da pirâmide social.

João Pedro Pádua
(www.melaragnocpadua.com.br)

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Breno Melaragno Costa no "Jornal das Dez"

O advogado Breno Melaragno Costa, sócio do escritório Melaragno Costa e Pádua Advogados Associados e colaborador deste blog, estará hoje no programa Jornal das Dez, que passa às 22h, no canal de TV à cabo Globonews. O tema da entrevista será o sigilo das comunicações telefônicas e a sua quebra, em vista de recente matéria da grande imprensa que dá nota de interceptações telefônicas ("grampos"), aparentemente ilícitos, feitas nos telefones do min. Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal. Há reprises do programa em outros horários no mesmo canal. Para saber destas reprises, consultem a grade da emissora.

Comentários às declarações de Breno Melaragno Costa poderão ser feitas neste blog. Perguntas adicionais sobre o tema poderão ser feitas a ele no endereço escritorio@melaragnocpadua.com.br, e serão respondidas oportunamente.