quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Algemar as algemas?

Hoje, o Supremo Tribunal Federal aprovou um novo verbete da sua súmula vinculante - me perdoem os não-especialistas que me lêem, mas não vou explicar o que é a súmula vinculante; quem quiser ter uma idéia, leia o art. 103-A da Constituição de 1988. Trata-se do verbete n.º 11, que diz o seguinte:

"só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado."

Este novo verbete foi aprovado por proposta do min. Marco Aurélio Mello, relator do HC 91.952, no qual o plenário do STF, por unanimidade, anulou um julgamento feito em um tribunal do júri do interior de São Paulo. O argumento foi que o uso de algemas no réu durante o julgamento perante o júri, porque injustificável, acabou prejudicando-o, que teve uma imagem de incontrolável passada aos jurados. Antes disso, o único precedente recente do mesmo tribunal fora o HC 89.429, relatado pela min. Carmen Lúcia, perante a Primeira Turma, e julgado em 22.08.2006.

Como todos deve saber - e aqui também os não-especialistas - toda a controvérsia em torno do uso de algemas vem de recentes operações grandes, principalmente da Polícia Federal (PF), nas quais todos os presos provisórios ou temporários acabaram sendo algemas, independentemente de sua periculosidade. Por outro lado, obviamente, muitas vezes - talvez a maioria - tais expedientes eram uma forma de a PF compor o seu quadro dramático e alegórico dos mocinhos prendendo os bandidos, nomeadamente os bandidos endinheirados, do colarinho branco. Foi esta a questão naquela útlima decisão citada (HC 89.249): a primeira turma concedeu salvo conduto ao paciente para que este não fosse algemado ou exibido à imprensa desmedidamente, pela PF.

E aqui, não nas algemas, está a grande questão. Antes, anoto que, interessantemente, a decisão que motivou o verbete da súmula vinculante em questão não foi tomada em favor de réu ou indiciado do colarinho branco, mas em favor de um cidadão pobre, para anular o seu julgamento perante o tribunal do júri de uma comarca do interior. Também é digno de nota o fato de que ao menos este verbete n.º 11 da súmula não obedece a um dos requisitos para edição de verbetes de súmula vinculante, qual seja: o de existirem "reiteradas decisões sobre matéria constitucional", como diz o art. 103-A, citado acima - devo este argumento ao meu amigo e diligente procurador da república, já citado neste blog, José Schettino.

Mas eu dizia que a grande questão não são propriamente as algemas para os presos - qualquer que seja o seu status -, mas o uso que se faz das algemas. O problema, como sempre no Brasil, está no desvirtuamento de um instrumento pertinente e comum à cultura ocidental como um todo. Pelo que sei, vários outros países do Ocidente fazem uso regular das algemas, para qualquer preso, quando em trânsito. As algemas não servem para humilhar, mas para simbolizar que o estado está na custódia daquele cidadão, o qual, por sua vez, perdeu parte de sua liberdade, posto que provisoriamente, conforme o caso, para o estado. Está este, portanto, não só legitimado a reduzir a liberdade do cidadão específico, mas obrigado a garantir-lhe a segurança e a custódia.

Por outro lado, também pelo que sei, em hipótese alguma se admitem as algemas perante a justiça - ou seja: em audiência judicial -, tampouco quando o custodiado está detido estaticamente em algum lugar. Nestas oportunidades, ele é, salvo a sua detenção em algum lugar confinado em um espaço específico, livre para se movimentar. Especialmente perante a justiça, o simbolismo tem de ser o inverso do que as algemas trazem: perante a justiça qualquer cidadão, justamente porque titular de direitos e garantias que o tornam autônomo - livre e igual aos seus concidadãos -; perante a justiça, dizia, ninguém pode estar preso. A justiça vem para ouvir o homem como cidadão autônomo; vem para lhe conceder a palavra e, assim, simbolicamente (re)constituí-lo ser livre e igual a todos os outros, ainda que, momentaneamente, esteja limitado, por qualquer motivo, em sua liberdade de ir e vir.

Portanto, o problema das algemas é, antes de tudo, um problema de abuso. Que se usem, com parcimônia, na segurança de presos e agentes. Mas que se respeite, em qualquer caso, a autonomia do sujeito, o que significa: (i) a não-utilização das algemas excessivamente apertadas, como um "corretivo"; (ii) a não-utilização das algemas para promover o simbolismo da pena antecipada e da humilhação pública, não importa de quem seja; e (iii) a vedação absoluta de sua utilização perante a justiça, a quem, justiça, justamente, se comete a difícilima e relevantíssima tarefa de acertar, pela controvérsia da lide penal, a correção jurídica da constrição à liberdade que permitiu o uso de algemas em primeiro lugar.

Para evitar este tipo de abuso, muito dificilmente uma justificação por escrito (antes ou depois de algemar?) seria minimamente eficaz.

João Pedro Pádua
http://www.melaragnocpadua.com.br/