quarta-feira, 7 de maio de 2008

O furo da prisão preventiva

Tudo bem, tudo bem, eu não sou advogado há muito tempo. Mas lido com a área criminal (ou penal) há tempo suficiente para poder dizer o que vou dizer agora: nunca vi ou soube de algo tão pitoresco, incrível, inimaginável ou estapafúrdio do que uma prisão preventiva que é anunciada pela mídia de massa quase uma semana antes de ser efetivamente requerida - que dirá deferida (ou não). E o que é pior: uma prisão preventiva que depois deste monte de furos (de reportagem) que a anunciavam, efetivamente é requerida e tem seu requerimento anunciado - onde? - na mídia!

Vamos contextualizar e explicitar um pouco de conhecimento prévio. Afinal, a maioria dos nossos leitores, provavelmente, não sabe bem o que é um prisão preventiva. Não se sintam mal, especialmente vocês que não são da área jurídica, ou, se são, não são especialistas em matéria penal: o promotor de justiça, responsável pelo caso-novela "Isabella Nardoni", que é da área jurídica e trabalha com direito penal, aparentemente também não sabe. Aliás, justiça seja feita, não só ele assim aparenta, como muitos dos membros do Minsitério Público e delegados de polícia por aí, no que são seguidos por um também sem-número de juízes - estaduais ou federais, de primeira instância ou não.

Então, mãos à obra. No que diz respeito ao processo penal, existem dois grandes tipos de prisão. Na verdade, o critério para esta grande divisão, não é bem a prisão em si - já que privação de liberdade é sempre privação de liberdade - mas o momento jurídico em que cada uma é cabível. O normal da prisão no direito é que ela exista como pena. A lógica é óbvia e já incorporada ao senso comum: quem cometeu um crime está sujeito, em regra, a uma pena de prisão; a prisão, então, é a maneira pela qual o direito pune (um sinônimo técnico é sanciona) alguém que lhe violou as normas de conduta, nomeadamente as previstas na lei penal.

Este é o normal. Cometeu um crime, é - ou pode ser - preso, por um determinado período de tempo. O detalhe que pontua esta utilização normal da prisão no Direito (penal) Brasileiro é que quem diz, juridicamente, quem cometeu um crime - e, portanto, quem está (ou pode estar) sujeito à pena de prisão - é o poder judiciário, desde que esgotadas todas as possibilidades - leia:-se recursos - do acusado livrar-se desta declaração de que cometeu o crime e da aplicação da conseqüente pena - o que se chama, tecnicamente, condenação. Quando se esgotam todas as vias de impugnação de que dispõem os acusados para não se verem condenados, e, logo, quando a declaração de cometimento do crime contida na condenação torna-se a palavra final do poder competente para proferi-la - o poder judiciário, repita-se -; quando isso acontece, diz-se que o processo transitou em julgado e, bem por isso, que a condenação tornou-se definitiva. Só aí, segundo a Constituição Federal de 1988 (art. 5º, LVII), pode alguém ser considerado efetivamente culpado e responsável por um crime.

Daí se tira que só quando o poder judiciário, por decisão definitiva (transitada em julgado) pode proclamar alguém culpado de um crime, e, só depois desta proclamação, e em decorrência dela, pode aplicar uma pena, eventualmente de prisão. Estão excluídas desta atribuição de proclamar culpa e aplicar pena a Rede Globo, o jornal O Dia, qualquer outro veículo da mídia em qualquer de suas formas, e, mesmo, o delegado de polícia e o membro do Ministério Público. Claro, todos eles podem ter suas opiniões sobre a culpa e o merecimento da pena de quem quer que seja; em alguns casos esta opinião tem alguma conseqüênica jurídica importante - se o membro do Ministério Público, por exemplo, é da opinião de que não houve crime, ele não processa criminalmente o investigado. Mas, em todos estes casos, se trata, no fundo, somente de opinião ou de declaração juridicamente provisória e precária, quando muito.

Pois é neste momento de indefinição quanto à culpa e à aplicação de pena que tem lugar a prisão preventiva. Este não é o caso normal de prisão. Este é um caso excepcional. Não existe, ainda, declaração de culpa por parte do poder competente, após uma marcha processual justa que garanta à acusação e à defesa uma disputa jurídico-discursiva eqüitativa, com o que, tecnicamente, chama-se paridade de armas. Tudo o que existe, não importa o quão impressionante, são indícios, quer dizer, elementos de prova, ainda não plenamente tratada em uma relação processual. Estes elementos de prova são indispensáveis para a vaibilidade da acusação formal, a cargo do Ministério Público, perante o poder competente para avaliá-la, o poder judiciário. Mas absolutamente não servem para garantir, juridicamente, a culpa de quem quer que seja.

Ora, então para quê existe prisão antes da formação definitiva da culpa. Justamente para garantir que o processo em si não seja perturbado ou frustrado pelo acusado, quer pela manipulação ilícita de elementos do processo - ameaças a testemunhas, provas forjadas ou destruídas, etc. -, quer pela sinalização de que o processo não será efetivo - tentativa de fuga, indícios de reiteração da prática criminosa de que está o acusado sendo acusado, etc. A prisão antes do processo findo, de que são os exemplos mais famosos a prisão em flagrante e a prisão preventiva só serve para estas finalidades. Não serve, pois, como é óbvio, para antecipar a aplicação da pena, justamente porque não houve, ainda, o pressuposto da aplicação da pena: a declaração de culpa.

Isto tudo o que foi dito minuciosamente é lição elementar de processo penal e está expressamente escrito no art. 312 do Código de Processo Penal, reforçado por outras normas do mesmo código e da constituição. No entanto, é cada vez mais esquecido. Autoridades encarregadas de investigar e acusar, mas não de julgar e aplicar pena, parecem não se conformar com o fato de que não são eles quem julga o processo, nem com o fato de que é só no processo que a igualdade discursiva entre acusação e defesa pode tornar justa uma aplicação de pena. E pretendem, então, prender os acusados, para puni-los, mesmo antes de sua culpa ser juridicamente declarada - e, também, por isso mesmo, antes que eles tenham tido oportunidade de se defender com todas as armas de que juridicamente dispõem. O mecanismo de que se usam para fazer isso é o fato de que o mesmo art. 312 do Código de Processo Penal prevê a possibilidade de decretação de prisão preventiva, no caso de ameaça à "ordem pública". Nesta interpretação enviesada, quando o crime de que se acusa alguém é grave e toca a sociedade, a não-prisão do acusado causa descrédito às instituições perante esta sociedade escandalizada, a quem parece que o culpado está solto. Para não dar margem a esta impressão, seria, pois, preciso prender o acusado, mesmo antes de terminado o seu processo: a justiça estaria, assim, perante o "clamor público", "fazendo a sua parte".

De fato, num caso como o de Isabella Nardoni, este clamor público existe. De fato, diante da condenação da mídia, da mãe, da delegada, do promotor, é aparentemente contradítório deixar os acusados soltos. Como podem estar soltos, se cometeram o crime? - perguntaria o "homem médio". Ora, podem estar soltos, porque, para o direito, não há certeza de que estes dois acusados, de fato, cometeram o crime de que são acusados. A sociedade, inflamada pela mídia, e pelas entrevistas coletivas de autoridades pouco cientes de seu dever de serenidade, pode ter "certeza" de que "foram eles" - embora, numa sociedade realmente bem ordenada, imagino que não se deveria ter esta certeza antes da condenação dos acusados. O direito e suas autoridades não podem ter certeza antes da decisão definitiva de condenação.

Aliás, como dissemos aqui neste blog, a reconstrução do fato pelo direito no corpo de um processo serve, justamente, para retirar do clamor público o domínio sobre a interpretação dos significados sociais dos fatos particularmente traumáticos para a sociedade. É na serenidade e no tempo do processo, não condizente com o tempo da mídia, é certo; é nesta serenidade que as emoções sociais são re-significadas, de modo que o "mata, esfola" seja transformado em uma condenação justa, porque proferida calma, racional e sob o signo da igualdade entre acusação e defesa. Fosse o processo a servir de escoadouro do "clamor público", não haveria necessidade de processo. Era melhor descriminalizar as conseqüências do linchamento e deixar o povo fazer a "sua justiça".

Que função preventiva poderia ter uma prisão do casal de acusados no caso Isabella Nardoni? O que ela previniria? O que uma medida deste tipo, anunciada com uma semana de antecedência, pelo menos, e anunciada em entrevista coletiva, poderia, em qualquer momento, previnir? Fuga? Destruição de provas? Aliciamento de testemunhas? Com esta vantagem inicial no tempo, eles poderiam fazer tudo isso e ainda mandar um cartão postal para a delegada e o promotor...

João Pedro C. V. Pádua
(http://www.melaragnocpadua.com.br/)

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