quarta-feira, 16 de abril de 2008

Isabella e Garapon

O juiz francês Antoine Garapon, embora pouco conhecido no Brasil, é muito influente no meio intelectual daquele país. Editor da prestigiosa revista acadêmica multidisciplinar Esprit, e membro do Institute des Hautes Études Judiciaires, Garapon tem como uma de suas principais obras Les gardiens des promesses, traduzida no Brasil para "O juiz e a democracia", pela editora Revan. Nesta obra, apesar do título em português sugerir uma avaliação sobre a legitimidade democrática da atividade jurisdicional em tempos de neoconstitucionalismo (movimento da teoria constitucional pós-45, primeiro em países como Alemanha e Itália), na verdade, a maior parte do livro se dedica à avaliação da atividade do juiz tendo em vista o recente protagonismo deste ator social no contexto de casos penais envolvendo, principalmente, políticos e elites sociais.
O principal alvo de Garapon é a espécie de jurisdição paralela que a mídia realiza em cada caso penal rumoroso e, mais grave ainda, a associação que freqüentemente se estabelece entre esta e a jurisdição "convencional", onde o juiz julga um conflito de interesses - no caso penal, entre a pretensão do estado de punir e a do acusado, de se manter não-punido -, segundo regras processuais rígidas pré-estabelecidas. Quando o juiz abandona a sua posição de calma, de brandura, de respeito às "regras do jogo" processual penal que estabelecem o meio pelo qual se vai produzir a única verdade que o processo judicial pode produzir - e que certamente não é a famigerada "verdade real" -, quando isso acontece, a lógica da mídia do imediatismo, do furo de reportagem e da captação da audiência pelo estímulo dos afetos inconscientes toma o lugar da lógica judicial da ritualização do conflito e da conscientização simbólica do evento criminoso que tanto choca e provoca os mais variados sentimentos.
Este ritual simbólico da jurisdição penal busca, justamente, pela reconstrução dos fatos supostamente criminosos, num ambiente em que o estado toma as rédeas desta função, tratar de extrair um evento passado do domínio inconsciente de uma sociedade que não pode mais representá-lo senão pela desorganização e fusão de afetos e sentimentos que caracterizam as produções psíquicas inconscientes. Sem esta apropriação dos fatos pelo ritual judicial, qualquer procedimento de busca da verdade tende a decair em uma busca confusa pela saciedade impossível de sentimentos caóticos - ira, medo, revolta, condescendência, pena, pasmo.
A mídia, ao contrário, procura extrair o máximo destes afetos e sentimentos. Para isso, ora se vira para os "suspeitos" e os condena de antemão. Ora vira-se para a sua família, e cria dó para a horrível situação por que passam. Ora vira-se para a "opinião pública" e a inflama. Com isso, a única prejudicada é a produção de uma verdade já precária, parcial, às vezes impossível e improvável que é a única que o contexto de um processo penal moderno, ao obrar sobre fatos privados e passados, pode produzir.
O caso da menina Isabella é um dos mais óbvios para ilustrar o desastre que um processo conduzido pela mídia pode produzir. Antes mesmo de finalizados os laudos periciais, indispensáveis, sob pena de nulidade processual, para casos de crimes que deixam vestígios; antes mesmo disso, já se avaliavam depoimentos de testemunhas, o promotor de justiça - que realiza o primeiro julgamento do caso com a sua opinio delicti - dava entrevistas várias e concludentes, os delegados se digladiavam quanto a porcentagens de conclusão do inquérito, e até um relatório policial - peça que encerra um inquérito concluído - já foi produzido. Tudo sem falar no "depoimento" prestado, em rede nacional no telejornal de maior audiência no Brasil, por algumas testemunhas que já haviam deposto no inquérito. E já que estamos falando de inquérito, não custa lembrar sua natureza legal sigilosa...
Não importa quem será condenado. Já se perdeu, sem dúvida, o mínimo de verdade que se poderia ver no caso. E, com isso, toda a finalidade de haver acusação e processo penal já também se perdeu.

João Pedro Pádua (www.melaragnocpadua.com.br)

2 comentários:

Bruno M disse...

Não poderia deixar de comentar o caso já tão comentado por todos entendedores e leigos em direito. Na qualidade de Defensor Público, aviso que não poderia desejar que levassem em conta minha opinião sem antes me qualificar. Eu assisto tv raramente e não fiquei surpreso de, nas raras vezes que sintonizo um canal de tv aberta, me informar sobre o caso da menina que morreu. Bom, indo direito ao assunto, a mídia é um reflexo de seus telespectadores e já tive a oportunidade de dizer no grupo que o ser humano, quando diante de um crime nessas cicunstâncias, se satisfaz mais com um derramento de sangue do que com as regras do jogo que são pré-estabelecidas em nome da justiça. Mas o que mais me revolta é ver o MP incentivar a caça às bruxas promovendo um show na tv que tem em seus bastidores a promoção individual de seus atuantes (promotores, repórteres, advogados etc). Parece, pelas informações mais recentes, que as provas periciais apontam para a culpa da madrasta com um auxilio do pai na tentativa de forjar um acidente. Eu só fico desapontado quando vejo que essas provas periciais só existem em casos como esse, onde a mídia atua. Quando o acusado é pobre e a mídia não está policiando, as agências policiais conseguem a confissão do réu e pronto, fim da investigação, menos um trabalho a fazer. O maior problema da mídia é, ao meu ver, a seletividade que tem como critério uma boa história vendável, uma novela. É pena que os órgãos do MP e alguns juízes se deixam seduzir pela luzes da tv e entram no jogo que só serve à venda de comercial, pois a justiça procedimental que foi elabora em experiências históricas importantes (com muita contribuição dos pós-positivistas) fica de lado quando a sede humana em ver sangue coloca de lado a garatia da presunção de incência que garante ao cidadão, quem quer que seja, receber do estado um tratamento de inocente até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Em época de divulgação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, já é tempo de se estudar uma forma de impor à midia a regra da presunção de inocência, o que esbarraria na liberdade de comunicação etc. Seria uma questão de poderação de valores. O fato é que em 5 minutos de repostagem, 4:55 minutos são dedicados à acusação, apenas na conclusão da repostagem a mídia, para se dizer imparcial, diz que os já pré-condenados são apenas suspeitos. Isso não é correto, não é ético.
PS: desculpe qq erro, estou escrevendo direto e sem correção.

Fernandinha disse...

A novela das 8 está acabando e outra já está em curso?? Que falha da produção, não é?
Ontem vi no telejornal matinal da maior emissora do país o conteúdo EXCLUSIVO do inquérito policial (???!!!), em nítida concorrência com as outras emissoras, que, coitadas, não tiveram a mesma sorte. Com direito a apresentação do conteúdo e aqueles grifos de praxe (recortando as frases!).
Vou reclamar com todos os meus professores de Processo Penal que o que eles disseram é mentira! E ainda que nesta fase prevalece a presunção de inocência... In dubio pro quem??