"Aquele magistrado que, antes de lhe chegar às mãos os autos de um processo criminal, com todas as suas peculiaridades e minúcias do caso concreto, tenciona reprimir o crime a, assim, banir uma particular injustiça, quer por força de um compromisso moral, quer psicológico ou mesmo religioso, pode ser tudo, mas não será uma juiz."(grifo do autor)
Eu até gostaria que fosse eu o autor da citação acima. Mas, infelizmente, não sou. O que talvez choque os meus leitores - especialmente os criminalistas - é o real autor do parágrafo transcrito: trata-se do procurador da república Rodrigo de Grandis, de São Paulo, que atua pelo Ministério Público Federal na acusação do caso (inquérito, por enquanto) que envolve, entre outros, o banqueiro Daniel Dantas.
Não, eu não vou escrever sobre a querela entre o juiz Fausto Martin de Sanctis e o ministro Gilmar Mendes, tão acrimoniosa que já deu até representação por crime de responsabilidade (ou, popularmente, "pedido de impeachment"), contra este último, no Senado, arquivada embora, a esta altura. Mas, me desculpe o juiz Fausto de Sanctis - ou, em juridiquês, data maxima venia -, eu vou falar sobre a atitude dele na conduação deste processo. Entendam-me bem, não faço isso para criticar especificamente o juiz Fausto de Sanctis, mas, já que ele ficou famoso, vou me permitir usá-lo de protótipo para uma atitude cada vez mais comum entre juízes - federais ou não, de primeira instância ou não - e, diga-se logo, cada vez mais incompatível com a posição de um juiz, ao menos no processo penal.
Como bem disse o procurador de Grandis no mesmo artigo do qual saiu a citação acima (Revista Brasileira de Ciências Criminasi, número 71), o juiz não deve ter compromisso com a luta contra o crime. Como assim? - perguntará o estupefato leitor. O juiz não é um membro do poder público? Não é justamente ele,quem aplica a pena? E não é missão do poder público reprimir o crime? Como, então, não tem ele compromisso com a luta contra o crime?
Não vou negar o valor da linha socrática de indagações acima. O próprio juiz de Sanctis parece usá-la implicitamente quando justificou sua conduta na operação - que nome infeliz! - "Satiagraha" - parece sânscrito... - da polícia federal, na qual preso, entre outros, o banqueiro Daniel Dantas. Disse ele:
" Viver em paz e livre requer muitas vezes dos que se esquecem dos preceitos sociais legítimos a resposta estatal. Não se pode rivalizar com as pessoas de bem.
As custódias cautelares (legalmente previstas) decorrem, apesar da excepcionalidade, do destemor e desrespeito às instituições regularmente constituídas no país, para que as atividades de persecução estatal tenham seu curso natural." (para o texto na íntegra, clique aqui)
Vejam todos que o "curso natural" da persecução estatal, na leitura do juiz Fausto de Sanctis - e de muitos de seus colegas, talvez a lamentável maioria - é a prisão do perseguido. O curso não-natural, por exclusão, é a absolvição, portanto. Isso sem embargo de a nossa constituição dizer que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória" (art. 5º, LVII).
Esta norma existe, caro leitor, não para "proteger bandido", mas porque sabiamente e ao contrário do nosso personagem judiciário, a nossa atual constituição soube reconhecer que não existe um fim "natural" da perseguição (ou persecução) penal. Tanto ela pode desembocar na condenação, quanto na absolvição. Ao processo penal, para ser devido processo (due process), deve estar assegurada a possibilidade da surpresa; ou seja: o processo não pode começar nem pendendo para um lado, nem para o outro, senão deve pender, para qualquer dos lados, somente após o seu encerramento como evento jurídico de produção de correção normativa e de verdade -verdade processual, bem entendido, já que a "verdade real", de que tanto falam os manuais de processo penal, só quem vai saber, se tanto, são o acusado, sua vítima direta (se houver) e, para quem acredita, Deus.
E quem garante este não-pender para nenhum dos lados? Acertou quem respondeu "o juiz". O juiz é um órgão do estado, conforme, de novo, diz a Constituição de 1988 (art. 92). Ele, portanto, como membro do poder judiciário, exerce função de estado. Em que consiste esta função - no processo penal, para facilitar a nossa vida? Consiste em assegurar o exercício de humilidade de poder que o próprio estado impôs a si próprio. Veja: o estado detém o monopólio do exercício da violência como coerção legal e normativamente correta. A princípio, o próprio estado pode aplicá-la a quem quer que tenha praticado um ilícito. Em muitos momentos, o estado o faz, por assim dizer, diretamente, como, por exemplo, ao aplicar uma multa administrativa sobre um açougue que descumpre as normas sanitárias a que está sujeito.
No caso da sanção penal, por ilícito penal (crime ou delito), no entanto, não há a possibilidade desta aplicação direta. Como a pena criminal é especialmente grave, em regra - a privação da liberdade -, o estado, em exercício de humildade, comete a um órgão seu, distinto do que aplica a lei diretamente, o que dogmaticamente chamamos "prévio acerto de legalidade do ato". O juiz, apesar de, performativamente, aplicar a pena criminal e fazê-la eficaz concretamente, o faz não por ser o órgão que deve "proteger" a sociedade do crime, mas, ao contrário, por ser o órgão que deve limitar a atuação do estado e garantir que, no caso concreto "com todas as suas peculiaridades" - disse sabiamente o procurador de Grandis -, a pena é devida, normativamente correta, segundo uma verdade processual obtida no confronto argumentativo entre a palavra da acusação e a palavra da defesa, em igualdade de condições, dadas as suas naturais deferenças.
O juiz, portanto, não coopera com a segurança pública, senão limita a atuação do estado também neste campo, e assegura a sua correção, no ponto final da cadeia de perseguição penal: o processo de declaração da responsabilidade penal ou da sua ausência, com a conseqüente aplicação ou não-aplicação da pena. Na feliz e simples expressão do desembargador Amílton Bueno de Carvalho, do RS, o processo penal equilibrado se dá assim: um acusa (o Ministério Público, de regra), um se defende (o réu), e outro julga (o juiz). Isto existe, justamente, para prevenir injustiças, não para proteger "fascínoras" - ou alguém acha que todos os acusados sempre são culpados e que o Ministério Público nunca erra?
Quando o juiz pensa que deve garantir a "justiça", lida sempre como condenação dos (pré-)culpados; quando o juiz pensa que fazer justiça e mandar todo mundo para a cadeia por ato próprio, não raro concertado com a acusação, este juiz perde a sua nobre e dificílima função. E, é pesaroso dizer, se torna, se não equilibra a balança, peça inútil para o processo.
João Pedro C. V. Pádua
www.melaragnocpadua.com.br
segunda-feira, 28 de julho de 2008
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Um comentário:
Como não sou advogado e sempre trabalhei na área tecnológica . De direito somente entendo como cliente e fui cliente de muitos ( Nilo Baptista, Felipe Amadeo, Clovis Sahione, Onurb Bruno, só para citar de memória alguns) em virtude de minha atuacao como lider sindical patronal.
Tudo o que foi postado corresponde a minha opinião sobre as entrevistas do citado juiz e de outros similares.
Minha opiniao eu a externo entre amigos, entre taxistas que me conduzem e entre alunos.
Alem de não concordar com as atitudes do juiz. Por exemplo a de dar nova ordem de prisão, mesmo após a libertação da primeira vez, tambem não vejo como julgar tão rapidamente, apenas através de trechos de escutas telefonicas.
Tambem não concordo com as algemas gratuitas e com as armas pesadas e vestimentas de Ninja que os policiais federais utilizam quando das operaçòes previamente avisadas para a midia.
Mas ai são outras considerações que fogem da competencia juridica, se é que posso opinar, do Comentário do Dr. João Pedro.
Parabens e continue escrevendo a sua real e honesta opinião.
PAULO SAMPAIO
ex-presidente durante 15 anos do Sindicato de Escolas Particulares do Municipio do Rio de Janeiro
paulo@sampaio.com
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