quarta-feira, 4 de junho de 2008

"Otoridade"

É interessante como pequenas práticas e usos lingüísticos revelam tanto sobre uma cultura. Isso não é, obviamente, conclusão minha. Muitos autores, principalmente entre antropólogos e lingüistas, buscavam, no uso da língua a chave para compreender a cultura. Isso fundou um método muito famoso em ciências humanas e sociais - a análise do discurso -, permitiu um grande avanço na antropologia estruturalista do início e do meio do séc. XX, e transformou-se em conceito básico de lingüística, a "hipótese de Sapir-Whorf", intitulada de acordo com os dois lingüistas que popularizaram a teoria das implicações recíprocas entre cultura e sistema lingüístico.

Esta muito sumária - e, pois, perigosa - esquematização teórica serve para contextualizar uma conclusão muito sutil a ser tirada de um evento muito grotesco. A maioria dos leitores - certamente todos, dentre os que acompanham futebol - viu a confusão do fim-de-semana passado na partida entre Náutico e Botafogo, no Estádio dos Aflitos, em Recife (PE). Um jogador do Botafogo, visível e excessivamente nervoso, após ser expulso de campo, hostilizou a torcida adversária com o famoso gesto (obsceno?) fálico do dedo médio em riste contrastando com o resto dos dedos recolhidos ao punho. Como a troca de hostilidades entre jogador e torcida continuva, mesmo com o jogador expulso, a Polícia Militar local achou por bem intervir para procurar, digamos, demover o referido jogador botafoguense da idéia de continuar a "intercambiar" gestos agressivos e xingamentos com a torcida adversária. O jogador, por sua vez, diante da abordagem, digamos, "invasiva" da PM de Recife, passou a, também ostensivamente, se recusar acompanhar os policiais. Chegou mesmo a obter ajuda física de seus colegas de time, diante da tentativa de praças da PM de imobilizá-lo à força. Bem a história continua e tem suas nuanças interessantes, que, no entanto, são mais bem vistas em imagens (para ver as imagens, clique aqui). O que aqui nos interessa é que, ao final, o tal jogador acabou preso, junto do presidente do clube. E o que ainda mais nos interessa é como a mídia e os debates e conversas públicas informais nomeavam o crime de que fora o jogador acusado: desacato à autoridade.

O Código Penal brasileiro vigente é híbrido: metade dele, a primeira metade, que dita as normas gerais do direito penal, por isso chamada "Parte Geral", é fruto da Lei n.º 7.209 de 11.07.1984. A segunda metade, que define os crimes e prevê as penas, suas causas de aumento e diminuição, por isso chamada "Parte Especial", permanece predominantemente, a do Decreto-Lei n.º 2.848 de 07.12.1940. Obviamente, o momento político e jurídico do Brasil mudou - talvez não tão radicalmente - nos mais de 50 anos que separam as duas datas. Mas o crime em questão estava previsto desde 1940 no atual código. Fora, por aquele decreto-lei, batizado com nome simples: desacato, no art. 331. Mesmo estando o Brasil, naquele dezembro de 1940, imerso no auge de uma ditadura de orientação fascistóide, mesmo assim o crime não foi previsto como "desacato à autoridade", mas, simplesmente, como desacato. Aliás, pode ser vítima deste crime qualquer funcionário público, quer possua ou não autoridade discricionária alargada. Desde o oficial de cartório, até o presidente da república, passando pelo atendente do protocolo, pelo secretário, pelo titular de função pública temporária; enfim, todos os funcionários públicos (a definição legal está no art. 327 e parágrafo único do Código Penal) podem alegar ter sido vítimas de desacato, e qualquer pessoa pode cometê-lo.

No caso do jogo de futebol, aparentemente, a vítima de desacato foi uma policial militar que fazia o policiamento ostensivo dentro do campo de jogo. Por estar nesta função, presume-se que ela seja praça, e não oficial, razão pela qual é discutível que ostentasse a posição de autoridade. Se ser autoridade fosse elemento essencial do crime de desacato, provavelmente não haveria crime neste caso - e o jogador do Botafogo teria saído sem maiores dores de cabeça do Recife. No entanto, em um país em que todos são doutores - do advogado ao fisioterapeuta -, também todos têm de parecer ser - ao menos no Código Penal - autoridades. Será que, um dia, vamos todos querer ser cidadãos?

João Pedro C. V. Pádua

(www.melaragnocpadua.com.br)

Um comentário:

Karina Merlo disse...

É, João Pedro.
Não sei aonde iremos para com essa banalização do Direito Penal, que deveria ser recurso em "ultima ratio".
Atualmente o que vejo são reprimendas dessa instância para comportamentos nos quais o cidadão brasileiro realmente se rendeu: falta de respeito, compostura, querer ser notado ou se impôr através da agressividade.

Parabéns pelas suas colocações!
Karina Merlo