quarta-feira, 17 de março de 2010

Mais um “assassino” sem nome – o caso Glauco Vilas-Boas

Na última postagem desse blog, chamei atenção para o fato de que, embora todos nós conhecêssemos o menino João Hélio, nenhum de nós conhecia o que chamei de “o tal do Ezequiel”. Obviamente, não é possível ver algúem como um membro da sociedade – e da espécie humana em geral, na qualidade de “animal social” – se ele não tem um nome. O nome é mais do que um atributo de batismo ou uma forma de se dirigir a alguém. É uma porta de entrada para o mundo: só faz parte da nossa compreensão sobre o que existe as coisas (e pessoas) que tem um nome. Antes disse, ou melhor: sem isso, o máximo que as coisas (ou pessoas) podem ser é uma idéia amorfa, misturada na confusão dos nossos conteúdos e processos mentais.

Obviamente, portanto, para retirar de alguém o status de pessoa, basta retirar-lhe o nome. Quem não tem nome, como que não existe. O processo dá ainda mais certo se, em vez de simplesmente retirar o nome, se substitui o nome por um termo ou expressão qualificativa genérica. Esse termo ou expressão, ao invés de dar uma identidade, colocar alguém como parte da nossa sociedade e cultura, recoloca a pessoa como um atributo vazio, que passa a ser o único meio de identificá-la e, pois, de ver a sua existência.

Já tínhamos visto isso com o “tal do Ezequiel”, que virou o “assassino do menino João Hélio”. Vemos isso, de novo, com outro “tal”: o “tal”  do Carlos Eduardo, o “assassino do cartunista Glauco”. Juridicamente o caso parece ser muito simples: o tal do Carlos Eduardo confessou e, ao que tudo indica, sofre de um transtorno psíquico que o qualifica para ser declarado o que o jargão jurídico qualifica de “ininputável” (em miúdos, alguém que não é capaz de se controlar). Assim, ele vai sofrer o que em direito se chama uma “medida de segurança”, normalmente consistente na internação obrigatória em um hospital psiquiátrico público vinculado ao sistema prisional.

No entanto, o caso do tal do Carlos Eduardo suscitou uma outra questão mais geral, que deu argumento para um festival de preconceitos incorretos e desinformação: o problema do Santo Daime.

O Daime é um movimento cultural-religioso como qualquer outro, e é bem fácil, do ponto de vista técnico - embora não do ponto de vista social - argumentar que o estado alucionógeno que ele induz é muito parecido com o estado de hipnose coletiva que os cultos de Igrejas Neopentecostais (e outras) também induzem nos seus fiéis - a pergunta, então, é se os fiéis dessas Igrejas vão ter de passar por autorização prévia de um órgão de saúde pública ou similar para participar desses cultos também.

O Glauco não tinha obrigação de saber se o cara tinha tendência a quadros psicóticos antes - aliás, o diagnóstico desses quadros cabe a psiquiatras, os quais, muitas vezes, discordam entre si quanto a esse diagnóstico. Além do mais, consta que o rapaz (cujo nome eu não sei e isso é um indício da tendnciosidade da cobertura da mídia: você não pode sentir empatia por quem
não tem nome nem identidade singular); consta que o rapaz, eu dizia, já fora internado por dependência de outras drogas.

Acreditem vocês ou não, o uso de alucionógenos vem se mostrando muito promissor no tratamento de dependências químicas (e outrs transtornos psíquicos) e existe mesmo um grupo de pesquisadores de Haravard e outras grandes universidades americanas que vem conduzindo um estudo sério
sobre isso (clique aqui).

Ou seja, o Daime não parece sequer ter sido um ingrediente tão relevante assim no resultado trágico do evento. Alucinógenos (ao contrário do álcool, aliás) não têm propriedades farmacológicas de indução de agressividade e violência; não causam dependência e seu único efeito é o atingimento momentâneo de circuitos neuronais responsáveis por impulsos sensoriais. São milhares os membros de grupos culturais que têm a ayahuasca como parte de
suas práticas rituais e em nenhum deles se tem notícia de que os indíces de violência sejam alarmantes (para mais informações sobre ayahuasca, clique aqui e aqui).  Esse rapaz, o "assassino", parece ser, portanto, um sujeito com problemas psíquicos aparentemente sérios e que não vem encontrando tratamento capaz de dar conta desses problemas - pelo que ouvi, ele foi internado psiquiatricamente algumas vezes, obviamente sem sucesso. 

A dura verdade é que nenhum de nós está a salvo de ser
vítima de um surto incontrolável de alguém que possua um transtorno psíquico que o torne violento, paranóico, delirante ou alucinado (um livro excelente sobre isso foi traduzido no Brasil: "Homens maus fazem o que os homens bons sonham", do psiquiatra forense americano Robert I. Simon, Ed. Artmed).

Tampouco nós estamos completamente a salvo de o sermos nós mesmos, ou membros de nossa família, acometidos de transtornos como esses. Está aí, me parece, (un d)o(s) grande(s) paradoxo(s) da compreensão da alteridade, da empatia: em muitos casos, é preciso tentar compreender que
numa situação trágica, há vítimas dos dois lados. E que, infelizmente, o acaso é um fator que determina a nossa vida, para bem além do nosso controle.

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